David Harvey é um geógrafo britânico nascido em 1935, formado pela Universidade de Cambridge e professor da Universidade da Cidade de Nova York. De orientação marxista, Harvey é um dos principais nomes da Geografia Humana contemporânea, tendo sido agraciado em 1995 com o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da Geografia.
Entre as obras de David Harvey mais famosas e difundidas, destacam-se: A Justiça Social e a Cidade,Condição Pós-Moderna, Espaços de Esperança e A Produção Capitalista do Espaço. Atualmente, o autor vem trabalhando em uma série de livros voltados para a análise e compreensão de O Capital, de Karl Marx.
Harvey começou a destacar-se no cenário intelectual geográfico já nos anos 1960, com a publicação da obra Explanation In Geography, na qual adotava um discurso mais próximo à Geografia Quantitativa, então em voga na época. Posteriormente, o autor inclinou-se para os estudos urbanos, adotando uma postura marxista mais condizente com a corrente de pensamento que passou a dominar o pensamento geográfico a partir dos anos 1970, a Geografia Crítica.
Uma das premissas básicas dos trabalhos é a centralidade da teoria. Para ele, não há uma satisfatória análise do espaço geográfico e das transformações a ele referentes se não há uma base teórica que a sustente. Nesse sentido, um dos seus objetivos em todo o percurso intelectual foi o de compreender o funcionamento e a dinâmica espacial do sistema capitalista e sua função nas relações sociais contemporâneas.
Outro importante mérito dos estudos de David Harvey foi abordar a ideia de espaço que distingue as concepções de espaço absoluto (cartesiano), espaço relativo (inspirado nas contribuições de Albert Einstein) e o espaço relacional, incorporando elementos filosóficos que se afastam das medições exatas e englobam as relações de possibilidade.
Em evolução a esse raciocínio, o geógrafo britânico desenvolveu um dos mais importantes conceitos do pensamento geográfico das últimas décadas: a compressão espaço-tempo. Na esteira dessa concepção, ele foi capaz de visualizar a dinâmica nascente no contexto da Globalização de superação das distâncias, em que as transformações técnicas e tecnológicas foram capazes de acelerar os acontecimentos e os níveis de produção econômica e integração política.
Com sua posição política de esquerda, muito influenciada pelos pensamentos de Karl Marx e Henri Lefebvre, David Harvey constituiu uma Geografia Urbana e Econômica de contestação ao pensamento neoliberal e ao sistema capitalista como um todo, buscando expressar e denunciar a forma com que as contradições sociais manifestam-se no espaço geográfico.
A obra intelectual e científica de David Harvey é extremamente difundida e elogiada em todo o mundo, o que demonstra a relevância de suas contribuições teóricas e pragmáticas. Os seus estudos são – ao lado de nomes como Horácio Capel, Paul Claval, Doreen Massey, Milton Santos e muitos outros – um dos mais proeminentes das últimas décadas no contexto do pensamento geográfico.
David Harvey: 'Há magmas de descontentamento borbulhando em todo lugar'
Em SP, geógrafo analisa manifestações e afirma que lutas sociais saíram das fábricas para tomar as cidades. Pautada pelo lucro imobiliário, urbanização intensifica desigualdades - 27/11/2013.
Ao contrário de muitos intelectuais ao redor do mundo, o geógrafo britânico David Harvey afirma não ter se surpreendido com a onda de manifestações populares dos últimos anos. “Há magmas de descontentamento borbulhando por todos os lugares”, afirma, lembrando que até Estocolmo, na desenvolvidíssima e igualitária Suécia, enfrentou distúrbios sociais recentemente. “Difícil é saber quando e onde haverá erupção.”
Para Harvey, esse descontentamento generalizado tem origem na organização do espaço urbano – ou seja, nas condições em que se desenvolveram as cidades. “O ambiente das metrópoles tem sido replanejado em razão dos interesses do capital, não das pessoas”, destaca. “O ponto a que chegou nosso capitalismo, que está usando as cidades para extrair cada vez mais valor, o resultado disso é que os lugares de descontentamento e luta estão sendo deslocados das fábricas para o espaço urbano.”
Até pouco tempo atrás, recorda Harvey, as contradições sociais se observavam com mais intensidade nas fábricas: eram as relações de trabalho que explicitavam as desigualdades. O conflito diário entre patrões ricos e empregados pobres criou o caldo de cultivo necessário para o crescimento dos sindicatos e a expansão dos direitos trabalhistas. No final do século 20, com as mudanças no mundo laboral, automatização, terceirização etc., as desigualdades passaram a se expressar sobretudo nas grandes metrópoles.
Harvey defende sua ideia recorrendo a uma realidade bastante conhecida dos brasileiros que moram nas periferias das grandes cidades: a distância entre moradia, escola e trabalho; a péssima qualidade e baixa eficiência do transporte público; e a demora em percorrer trajetos urbanos diariamente. Nessas condições, lembra, o direito das pessoas de acessar os bens públicos oferecidos pelas cidades – cinemas, hospitais, teatros, universidades, praças, empregos, parques, museus – se vê seriamente comprometido.
Como é a população mais pobre quem acaba sendo deslocada para os bairros mais periféricos, o espaço urbano se transforma no reflexo da desigualdade social. Para piorar, o capital imobiliário, com o beneplácito do Estado, avança sobre áreas desvalorizadas, expulsando seus moradores para ainda mais longe. Quando as melhorias que tanto reivindicam são finalmente executadas pelo poder público, os imóveis se valorizam e eles já não podem pagar os novos preços dos aluguéis. Então, se veem obrigados a mudar.
“As oligarquias dominantes falharam em prestar atenção e atender às necessidades das massas”, argumenta Harvey, para quem as elites, enquanto aumentam exponencialmente seus rendimentos no mercado, se alienaram de suas obrigações sociais. Esse processo, explica, se observa em todo o mundo. “Há condições universais para a alienação do sistema dominante e de suas articulações políticas. O sistema não está sendo capaz de garantir qualidade de vida à maioria da população.”
Não é uma casualidade, portanto, que as manifestações populares ocorridas em várias partes do planeta tenham ocupado espaços públicos em grandes cidades – dialogando, assim, com necessidades até então invisibilizadas da população. Cada país com sua particularidade, as capitais brasileiras explodiram em fúria por causa da tarifa de ônibus e metrô em 2013. Na Turquia, devido à usurpação de uma praça para a construção de shopping. Nova York, Madri e Cairo também se apropriaram de praças contra desigualdades e tiranias. Em Londres e Paris, foram as periferias distantes que se ergueram em revolta.
“O papa utilizou uma boa frase para descrever essa situação: estamos vivendo a globalização da indiferença”, pontua Harvey. “Essa indiferença sugere que as classes dominantes não estão fazendo nada para mudar a situação. Mas, por outro lado, elas estão se dando muito bem.” De acordo com o geógrafo, um estudo realizado pela ong britânica Oxfam afirma que apenas em 2012, enquanto Europa se espreme em crises econômicas e sociais, os bilionários do mundo aumentaram suas riquezas em US$ 240 bilhões.
Por isso, a cidade se transformou em campo privilegiado para a luta de classes. Harvey lembra que 40 anos de neoliberalismo inculcaram na população a ideia de que não é possível aos setores empobrecidos habitarem bairros bem localizados nas metrópoles. O geógrafo lembra os ataques sofridos pelas políticas públicas que garantiam moradias sociais em áreas centrais de Londres – e que ainda existem em Nova York. “Temos que recuperar a noção de que o direito à moradia é um direito humano, ao que todos devem ter acesso”, conclui. “A cidade alternativa precisa fugir à lógica da acumulação.”
Fonte: Rede Brasil
David Harvey: "A crise capitalista também é de urbanização"
O geógrafo britânico sustenta que a sucessão de crises no sistema é alimentada por uma febre da construção que provoca crise no capitalismo em sua atual etapa hegemonizada pelas finanças.
David Harvey é um geógrafo britânico reconhecido internacionalmente. Estudou a relação entre as crises financeiras e urbanas. Ele sustenta que a sucessão de crises no sistema é alimentada, entre outras coisas, por uma febre da construção que, por sua vez, provoca crise no capitalismo em sua atual etapa hegemonizada pelas finanças. Harvey defende ainda que existe uma estreita relação entre urbanização e formação das crises. Além dos Estados Unidos, cita como exemplo a Grécia e a Espanha. Parte da explicação da crise nestes países, defende o geógrafo, está vinculado a péssimos investimentos em infraestrutura.
Enquanto alguns especialistas se esmeram em alegar que crise atual é uma crise das hipotecas subprime ou é o estouro de um capitalismo que se financeirizou demais, David Harvey prefere falar de "crises urbanas", provocadas por uma febre da construção "sem importar o quê". Autor de "Breve história do neoliberalismo", Harvey não só acusa a desregulação do setor financeiro como um dos fatores que levaram ao descalabro atual, mas adverte que a supremacia do capital concentrado sobre as decisões políticas seguirá sendo um impedimento para sair da crise.
Em sua passagem por Buenos Aires, o geógrafo britânico conversou sobre as transformações do mercado imobiliário nas últimas décadas, a orientação que teve o investimento em infraestrutura e a consequente "acumulação por perda de posse". Frente a um modelo que não é sustentável, Harvey propõe pensar "um novo tipo de urbanização".
Reproduzimos a seguir a entrevista concedida:
Desde sua perspectiva como geógrafo, que conexões encontra entre urbanização e esta crise?
Uma das coisas que eu gostaria de enfatizar é a relação entre urbanização e formação da crise. Nas décadas de 50 e 60, o capitalismo se estabilizou com uma forma de suburbanização massiva: estradas, automóveis, um estilo de vida. Uma das perguntas é se isso é sustentável no longo prazo. No sul da Califórnia e na Flórida, que são epicentros da crise, estamos vendo que este modelo de suburbanização não serve mais. Alguns querem falar da crise do subprime; eu quero falar das crises urbanas.
E o que pensa das crises urbanas?
Na década de 80 se pensava que o Japão era uma potência e essa crença sucumbiu nos anos 90 pela crise dos preços da terra. Desde então, não se recuperou mais. Também existe uma preocupação nos Estados Unidos de que a crise imobiliária impeça a recuperação, apesar de todas as tentativas que vêm sendo feitas para isso. Outra questão é que a forma de uso intensivo da energia exigiria muitas extensões de terra, o que criaria um estilo de vida de lugares dispersos. Isso está estabelecendo, justamente, um novo tipo de urbanização. O que chama a atenção é que a China está copiando os EUA, o que é muito estúpido. Isso não é sustentável sob a situação de crise ambiental. Existe uma alta conexão entre desenvolvimento capitalista, crise capitalista e urbanização.
Em que medida a transformação do mercado imobiliário influiu na crise da urbanização?
Onde as pessoas ricas colocaram seu dinheiro nos últimos 30 anos. Até os 80, colocar dinheiro na produção dava mais dinheiro que colocá-lo no negócio imobiliário. A partir dali, começou-se a pensar onde colocar o dinheiro para obter uma taxa de retorno mais alta. Os mercados imobiliários e da terra são muito interessantes: se eu invisto, o preço sobe, como o preço sobe, mais gente investe e, então, o preço segue suibindo. Em meados da década de 70, em Manhattan (Nova York), podia-se vender por 200 mil dólares um tipo de edifício que agora custa 2 milhões de dólares. Desde então, houve bolhas de diferentes tipos, que tem estourado uma a uma. Os mercados financeiros enlouqueceram nos anos 90. Se observamos a participação dos distintos setores no Produto Interno Bruto dos EUA, em 1994, o mercado acionário tinha uma participação de 50% do PIB. Em 2000, subiu para 120% e começou a cair com a crise das empresas pontocom. Enquanto que a participação do mercado imobiliário no PIB começou a crescer, e passou de 90 para 130% no mesmo período.
Qual sua opinião sobre a orientação que teve o investimento em infraestrutura nas últimas décadas?
O capitalismo não pode funcionar sem sua infraestrutura típica: estradas, portos, edifícios e fábricas. A grande pergunta é como se constróem essas infraestruturas e em que medida contribuem para a produtividade no futuro. Nos Estados Unidos, fala-se muito de pontes que vão a lugar nenhum. Há interesses muito grandes dos lobistas da construção que querem construir não importa o quê. Podem corromper governos para fazer obras que não terão nenhuma utilidade.
Um exemplo do que descreve é o que ocorreu na Espanha, com o boom da construção...
Uma parte da explicação da crise na Grécia e na Espanha pode ser vinculada com esses péssimos investimentos em infraestrutura. A Grécia é um caso típico também em função dos Jogos Olímpicos, que originou grandes obras de infraestrutura que agora não são usadas. Nos anos 50 e 60, a rede de estradas e autoestradas, nos EUA, foi muito importante para a melhoria da produtividade. Algo similar se observa atualmente na China, com estradas, ferrovias e novas cidades, que nos próximos anos terão um alto impacto na produtividade.
O sr. acredita que a China está enfrentando a crise de maneira distinta da dos Estados Unidos?
A China tem melhores condições que outros países sobretudo porque conta com grandes reservas de divisas. Os EUA têm uma grande déficit e a China um grande superávit. O outro problema nos EUA é político.
Quais são os fatores políticos que dificultam a saída da crise?
Quem tenta construir obras de infraestrutura úteis é acusado imediatamente de "socialista", que é o que está acontecendoi com Barack Obama. Na China isso não importa porque as condições políticas são outras. O governo na China é autoritário é pode pôr as coisas em seu lugar, como bem entende. No caso dos EUA, o Congresso está dominado por grupos republicanos e democratas que manejam interesses econômicos e as condições para tomar decisões são outras.
Deduz-se então uma diferença na relação entre o poder político e o poder econômico nestes países.
Na China, por causa da crise americana, a resposta foi fazer grandes projetos de infraestrutura imediatamente. Além disso, o governo centralizado da China tem enorme poder sobre os bancos. Deu a ordem: "Forneçam empréstimos para governos municipais e ao setor privado que vão tocar essas obras". O governo central dos EUA não pode fazer isso. Ele segue dizendo aos bancos: "Emprestem". E os bancos dizem: "Não". A China está crescendo a um ritmo de 10% depois da crise, enquanto os EUA seguem estagnados.
Quais são as falhas institucionais que levaram a essa crise?
Desde a década de 70, houve uma ideia dominante de que a resposta era privatizar. Há muitas alternativas para que o setor público forneça melhores serviços do que o setor privado.
O sr. acredita que esta concepção também penetrou o sistema financeiro?
Nos EUA, na década de 30, os bancos de investimentos estavam separados dos bancos comerciais. Nos últimos anos se permitiu que eles se unissem. É um caso de mudança regulatória, onde o Estado se retira do controle.
E como avalia o tipo de regulações que começaram a ser propostas a partir da crise?
Há uma teoria chamada "captura regulatória. Ela supõe que as galinhas devem ser controladas pelas raposas. Se olhamos para as formas regulatórias propostas até agora, nos damos conta de que as raposas estão ganhando e isso ocorre porque elas controlam também o Congresso dos Estados Unidos.
Há diferenças entre as políticas impulsionadas nos EUA e na Europa?
Sim, há diferenças. Um dos temas que estou estudando é justamente as diferenças que existem em distintos lugares. Por exemplo, na América Latina a reação dos governos foi muito mais sensível à crise do que o que se observa nos EUA e na Euorpa. Na Europa, há um grande conflito entre os países maiores e os mais pequenos. A Alemanha, que por razões históricas têm uma obsessão com o tema da inflação, impõe o tema da austeridade. O triunfo de um governo conservador na Inglaterra também fortalece a ideia de austeridade. Por isso, não surpreende que a Europa esteja estagnada, enquanto a China segue crescendo forte.
Que impacto têm essas políticas de austeridade?
A austeridade é algo totalmente errôneo. Em primeiro lugar, pelas diferenças de impacto entre classes sociais. Em geral, as classes mais baixas são as mais prejudicadas. Além disso, essas classes mais baixas, quando têm dinheiro, o gastam, enquanto que as classes altas o usam para
gerar mais dinheiro e não necessariamente para fazer coisas produtivas.
Por exemplo?
Muitos ricos dos EUA compraram terras na América Latina. Isso provocou o aumento do preço da terra. No longo prazo, devemos pensar como é possível viver no mundo de acordo com seus recursos. Isso não significa austeridade, mas sim uma forma mais austera de viver, o que não é a mesma coisa.
Qual a diferença?
Devemos pensar no que é que realmente necessitamos para ter uma boa vida. Muitas das coisas que pensamos do consumo são uma loucura, significam desperdiçar recursos naturais e humanos. Temos que pensar como fazemos no longo prazo para que 6,8 bilhões de pessoas possam viver, ter casa, saúde e alimento para que tenham uma vida razoável e feliz.
*Matéria originalmente publicada e traduzida por Katarina Peixoto, da Carta Maior - publicado 19/01/2011
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