Os combates entre o Exército Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) e o governo estão provocando um banho de sangue e nova catástrofe humanitária no Iraque, ocupado pelo imperialismo em 2003.
Na agressão promovida pelos EUA e nas suas consequências, bem como na campanha apoiada pelos norte-americanos para derrubar Bachar al-Assad na vizinha Síria, assentam as raízes do regresso da guerra ao território iraquiano, que Washington pondera voltar a bombardear ao mesmo tempo que tenta expulsar responsabilidades na proliferação do terrorismo.
Depois do avanço vertiginoso dos milicianos do Exército Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), o governo iraquiano garante que está rechaçando o assalto dos mujahidine a algumas das principais cidades do país. A ofensiva da organização que pretende instituir um califado entre o Iraque e a Síria, iniciada segunda-feira, 9, parecia imparável.
Em cerca de 48 horas, as forças jihadistas conquistaram Mossul, na província de Niniveh, e avançaram pelo centro do país até Kirkuk e Tikrit, nas regiões de Kirkuk e Salahedin (de onde era natural Saddam Hussein). Ameaçaram fazer cair a capital, Bagdad, e as as cidades santas xiitas de Kerbala e Najaf. O cenário foi de salve-se-quem-puder entre as forças armadas do Iraque, que na debandada deixavam para trás o material de guerra comprado aos EUA, fazendo proveito aos extremistas.
Na quarta-feira, 11, o exército iraquiano conseguiu travar a investida às portas de Samarra. A cidade, situada a pouco mais de 100 quilómetros de Bagdad, foi ponto de apoio para evitar a tomada de Baqubah, a 50 quilómetros de Bagdad e capital da região de Diyala, na fronteira com o Irão. Samarra serviu, igualmente, de trampolim para a reconquista de importantes posições em Salahedin. Sábado, 14, uma fonte oficial citada pela EFE assegurava que nesta última província, os insurgentes já só controlavam a capital, Tikrit.
Sexta-feira 13, justamente em Samarra, o primeiro-ministro do Iraque afirmava que os terroristas já estavam a ser expulsos e anunciou que o governo lhe atribuíra «poderes ilimitados» para combater os jiahdistas. Na cidade sagrada para os xiitas – por acolher um importante mausoléu de imãs cuja destruição parcial desencadeou, em 2006, uma guerra entre xiitas e sunitas que se prolongou por dois anos, provocando a morte a dezenas de milhares de civis –, Nuri al-Maliki chamou ainda todos os iraquianos a participem «nesta guerra contra os inimigos (…) da fé», noticiou a Lusa.
Al Maliki repetiu, assim, o apelo feito terça-feira, 10, quando tomado pelo desespero face à deserção massiva das tropas que lhe eram fiéis, declarou, em discurso transmitido pela televisão, que entregaria armas a todos os voluntários dispostos a defenderem o poder do Estado que dirige com mão-de-ferro, acusam os seus opositores.
Moqtada al-Sadr, que qualifica al-Maliki de ditador, foi dos primeiros a ordenar a formação de brigadas. O líder xiita – que em tempos se disse ter ao seu serviço o maior exército privado do país; que combateu os invasores norte-americanos e esgrimiu com outros senhores da guerra a posse de um quinhão dos despojos da agressão imperialista, foi seguido pelo ayatollah Ali al-Sistani, a maior autoridade religiosa xiita do Iraque.
O jogo de alianças a que al-Maliki se vê forçado para evitar trocar o seu reino por um cavalo, é, porém, mais complexo. Há anos que mantém com o autónomo Curdistão Iraquiano uma disputa pelo controlo da importante região petrolífera de Kirkuk, mas foram milhares de peshmergas curdos que retomaram a cidade ao EIIL. As forças curdas chegaram mesmo a entrar em combate mais a Sul, em Khanaquine, na fronteira com o Irã, província de Diyala, mas um bombardeo da aviação iraquiana estancou o avanço curdo.
Não é claro se a operação aérea das autoridades de Bagdad foi um acidente ou uma acção deliberada para conter a campanha militar proveniente do Curdistão Iraquiano. Especula-se que a segunda versão conjugue melhor com a importância que os curdos estão a assumir no conflito iraquiano. Curdos que, no início de Maio, noticiava a Prensa Latina, mantiveram conversações com vários blocos políticos com o objectivo de impedir um terceiro mandato de al-Maliki.
Nas eleições de 30 de Abril, o primeiro-ministro viu o parlamento fragmentar-se ainda mais dificultando-lhe a constituição de uma maioria. Aos curdos está reservada por lei a presidência do Iraque, o que pode funcionar como trunfo na formação de uma eventual coligação governamental que lhes seja favorável.
Já esta segunda-feira, 16, e enquanto o país está em guerra e se procede à rearrumação de forças político-militares, o Supremo Tribunal iraquiano veio a público confirmar a vitória de al-Maliki no sufrágio, com 95 deputados num total de 328. O Bloco Curdo, com 62 assentos, e a formação de Moqtada al-Sadr, com 34, são a segunda e terceira forças, diz a entidade.
Posteriormente, a Arábia Saudita, férreo aliado do imperialismo norte-americano, fornecedor e financiador de primeira linha das milícias que levam o terrorismo à Síria há mais de três anos, veio culpando al-Maliki pelo avanço do EIIL no Iraque e apresentou como solução um governo de unidade nacional... sem al-Maliki. No mesmo sentido, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, apelou à formação de um executivo que não imponha uma política sectária.
Cerca de uma semana após o reinício da guerra no Iraque, o cenário é de carnificina. Falta ainda apurar o desfecho da batalha de Tal Afar, mas os últimos relatos davam como seguro que o EIIL tinha vencido, logrando reestabelecer a plataforma giratória na fronteira com a Síria, de onde, aliás, vieram os mujahedine depois de meses de combates contra o governo de Bachar al-Assad e a Frente al-Nousra, apoiados pelos EUA e pelas petro-monarquias vassalas do Golfo.
O massacre de 1700 militares iraquianos foi reivindicado sexta-feira, 13, pelo EIIL, mas as informações alegadamente difundidas pela organização através das redes sociais não puderam ser confirmadas. Aos islamitas são atribuídas outras atrocidades, como a execução de doze imãs, sábado, 14, em Mossul, supostamente por estes terem recusado lealdade ao califado, relatou fonte oficial de Bagdad à EFE. O assassinato de outros tantos polícias numa cidade a Norte de Bagdad, de civis e de populares em Mossul e nas localidades próximas durante a ofensiva a Norte, também lhes é assacado, assim como um número difícil de contabilizar de atentados e emboscadas em espaços públicos contra polícias, centros de recrutamento, ou contra membros da entorage governamental de Bagdad e do Curdistão. Tudo tácticas que o EIIL vem usando na Síria
As autoridades iraquianas, à sua conta, atualizam o total de terroristas caídos em combate. 270 extremistas islâmicos mortos num bombardeo da aviação militar iraquiana na província de Al-Anbar, perto de Fallujah (cidade que se encontraria tomada pelo EIIL desde meados de Janeiro), divulgou, segunda-feira, 16, o comando militar iraquiano, o mesmo que, antes, tinha dado como certa a morte de pelo menos 56 extremistas na província de Bagdad desde domingo, 15, e de outros 279 jihadistas na campanha em curso em Salahedin, Diyala e Niniveh.
Notícias não desmentidas responsabilizam o governo de Bagdad pela morte de 33 pessoas, sábado, 14, a maioria membros do exército, na sequência de bombardeamentos indiscriminados contra duas mesquitas na província de Salahedin.
As vítimas estariam sequestradas pelo EIIL, mas o que o episódio mostra é que Nuri al-Maliki enfrenta com dureza a insurreição.
Este fato foi confirmado, sexta-feira, 13, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que estimava em centenas de mortos e um milhar de feridos as vítimas dos combates, e acusava «as forças do governo iraquiano [de] também cometerem excessos, particularmente o bombardeamento de áreas civis durante os combates em Mossul», de onde as tropas de Bagdad não terão deixado sair a população, suspeita-se.
A ação militar do EIIL para o estabelecimento de um Estado que junte parte do Iraque aos territórios que controla na Síria, agrava a situação humanitária no país agredido e ocupado pelos EUA em 2003.
A guerra do Iraque promovida pela então administração norte-americana e a proliferação de facções que se lhe seguiu durante a ocupação e por causa dela, calcula-se que tenha vitimado cerca de um milhão de civis, resultado dos combates e do uso de armamento não-convencional, da violência sectária e dos esquadrões da morte, do colapso dos serviços públicos e do empobrecimento.
Cidades inteiras foram reduzidas a escombros e cerca de quatro milhões de iraquianos foram forçados a refugiar-se dentro ou fora do país desde 2003, calamidade que prosseguiu, com menor intensidade, às mãos do executivo liderado por Nuri al-Maliki, o qual, desde 2012, não hesita em usar a força para abafar os que o contestam, caso das vagas punitivas recentes em Ramadi e em Fallujah.
Dados oficiais iraquianos indicam que, desde o início deste ano, a violência já matou mais de 4600 pessoas no país. A ONU afirma que só em Maio foram 900 as vítimas, e em Abril a repressão pré-eleitoral e contra o EIIL na província de Al- Anbar deixou, de acordo com as Nações Unidas, cerca de 2500 mortos, entre jihadistas, civis e membros das forças de segurança.
A Organização Internacional para as Migrações e estruturas da ONU afirmam que pelo menos meio milhão de pessoas fugiram aos combates durante a semana passada, cifra que deve pecar por defeito visto que parece referir-se apenas ao êxodo de Mossul.
Face à evolução dos acontecimentos no Iraque, onde as informações prévias ao fecho da nossa edição davam nota de que várias missões diplomáticas e parte da missão da ONU abandonam Bagdad, assim como do reforço do número de militares dos EUA na representação diplomática na capital iraquiana, persistia o impasse sobre qual o próximo passo do imperialismo.
Sabe-se que o presidente Barack Obama afastava a possibilidade do envio de tropas para o terreno, mas entretanto Washington fez chegar ao Golfo Pérsico um navio com 500 fuzileiros, vaso de guerra que se junta a um porta-aviões, um cruzador e um contra-torpedeiro, fornecendo à Casa Branca o tal leque de opções que pretende e do qual tem vindo a falar diariamente. Entre as hipóteses estão bombardeamentos com aviões não-tripulados, admite o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, para quem a cooperação com o Irã também não é de descartar.
O inimigo com quem os norte-americanos não têm relações diplomáticas há 34 anos, por seu lado, não enjeita a cooperação para combater o terrorismo no Iraque, desde que, frisaram altos responsáveis de Teerã, tal não implique uma intervenção estrangeira. Cenário pouco provável este de uma não-ingerência imperialista, tanto mais que um dos envolvidos no conflito é a Turquia, e os EUA e a NATO manifestaram, por estes dias, solidariedade total para com o país que viu 80 dos seus cidadãos serem raptados em Mossul, entre funcionários consulares e motoristas de camiões.
É evidente, sobretudo, a tentativa do imperialismo em demarcar-se de responsabilidades sobre os acontecimentos no Iraque. Tony Blair veio afirmar que o que está a acontecer nada tem a ver com a (segunda) guerra do Iraque. Obama e Kerry repetem-se insistindo que anos de «sacrifícios dos EUA» (sic) no país foram desperdiçados pela liderança iraquiana, acusando-a de incapacidade para «ultrapassar as suas desconfianças e diferenças» e vulnerabilizar a segurança do território.
A Rússia, através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, considera que «o que se passa no Iraque é a ilustração do fracasso total da aventura dos Estados Unidos e do Reino Unido e da qual perderam definitivamente o controlo». A síntese de Sergei Lavrov pode ser interpetrada quer como uma referência à de ocupação e saque do Iraque em 2003, quer como aludindo ao apoio prestado por Londres e Washington aos grupos armados sírios, entre os quais o EIIL.
De um momento para o outro, ao passar a fronteira da Síria para o Iraque, o EIIL passou de «rebelde» a terrorista no léxico de Washington e Londres. Kerry sustenta que os EUA se devem envolver no Iraque porque o EIIL conta com mercenários oriundos dos EUA, Austrália, Grã-Bretanha, Canadá, França, Alemanha ou Holanda, e que tal representa uma ameaça potencial para a Europa e a América do Norte. O governo britânico decretou, segunda-feira, 16, a ilegalidade do EIIL e de outros quatro grupos sírios, e sublinhou que o seu financiamento é um crime, enfatizando que a canalização de fundos e dos meios letais e não letais que têm fluído para derrubar Bachar al-Assad é para interromper.
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