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KADAFI VIVE MALI É A CONTINUAÇÃO DA GUERRA DA LIBIA

No Mali, não há uma guerra
do bem contra o mal 


Não aceitem a narrativa lançada pelos média ocidentais sobre o Mali, que estereotipa aquilo que se considera o mal. No Mali, até há pouco o governo nacional perseguia e matava os islâmicos que agora se voltam contra ele. Além disso, muitos dos revoltosos são os tuaregues expulsos da Líbia pós-Kadhafi. A análise é de Owen Jones, do jornal britânico ‘The Independent’.
Sem qualquer controle, sem debate, sem votação parlamentar, sem nenhuma subtileza. A Grã-Bretanha está agora envolvida em mais um conflito militar num país muçulmano, fiquem sabendo. Aeronaves britânicas estão a voar rumo ao Mali, enquanto a França bombardeia o país, argumentando que a milícia islâmica do malinesa poderia criar um “estado terrorista” que ameaçaria a Europa. 
A Amnistia Internacional e especialistas da África Ocidental alertam para o potencial desastre da intervenção militar estrangeira, mas as bombas “chovendo” nas cidades malinesas de Konna, Léré e Douentza sugerem que eles foram definitivamente ignorados.
A agonia no Mali surgiu apenas atualmente em nossas manchetes, mas as raízes são antigas.
Como as outras potências coloniais ocidentais que invadiram e conquistaram a África a partir do século 19, a França usou táticas de dividir para reinar no Mali, levando a amargura entrincheirada entre os povos nómadas Tuaregues – a base da revolta atual – e outras comunidades do Mali.
Para alguns ocidentais, este é um passado distante que deve ser ignorado, não remexido, e certamente não será usado para impedir nobres intervenções, mas as consequências ainda são sentidas diariamente. Inicialmente, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, sugeriu que o legado colonial descartaria uma intervenção liderada pela França, mas pode dizer-se que o envolvimento direto francês ocorreu de forma muito mais rápida do que o esperado. 
É que esta intervenção é, na verdade, consequência de outra. A guerra da Líbia é frequentemente apontada como uma história de sucesso para o intervencionismo liberal. No entanto, a queda da ditadura de Muhamar Kadhafi teve consequências que os serviços de segurança ocidentais provavelmente nunca sequer se preocuparam em imaginar. Tuaregues – que tradicionalmente vieram do norte do Mali – compunham grande parte do exército de Kadhafi. Quando o ditador foi expulso do poder, eles voltaram para a sua terra natal: às vezes à força. Do mesmo modo, negros africanos foram atacados no pós-Kadhafi na Líbia, um fato incómodo amplamente ignorado pelos média ocidentais.
Inundados com armas da Líbia em tumulto, os tuaregues viram uma abertura para o seu sonho de longa data rumo à autodeterminação nacional. Com a propagação de uma rebelião, o democraticamente eleito presidente malinês Amadou Toumani Touré foi deposto num golpe militar e o exército manteve a sua dominação – apesar de permitir que um governo civil lidere a transição para tomar o poder.
Pode não haver certamente simpatia pela milícia agora em luta contra o governo do Mali. Originalmente, eram os nacionalistas seculares do Movimento Nacional para a Libertação de Azawad que lideravam a revolta, mas eles já foram deixados de lado por jihadistas islâmicos com uma velocidade que chocou os analistas estrangeiros. Em vez de alcançar a independência tuaregue, eles têm ambições muito mais amplas, ligando-se a grupos semelhantes do norte do Nigéria. A Amnistia Internacional relata atrocidades horrendas: amputações, violência sexual, o uso de crianças-soldado, e desenfreadas execuções extrajudiciais.


Mas não caiam numa narrativa tão frequentemente lançada pelos média ocidentais, que estereotipa aquilo que se considera o mal, assim como temos visto na brutal guerra civil imposta na Síria. A Amnistia relata brutalidades por parte das forças do governo de Mali, também. Quando o conflito originalmente explodiu, tuaregues foram presos, torturados, bombardeados e mortos pelas forças de segurança, “aparentemente, apenas por motivos étnicos", diz a Amnistia.
Em julho passado, 80 presos detidos pelo exército foram despojados das suas roupas íntimas, encarcerados numa cela de 5m², cigarros foram queimados nos seus corpos, e eles foram obrigados a sodomizar-se uns aos outros. Já em setembro de 2012, 16 pregadores muçulmanos pertencentes ao grupo Dawa foram presos num posto de controle e sumariamente executados pelo exército. Estes são atos cometidos por aqueles que agora são nossos aliados.
Quando o Conselho de Segurança da ONU, por unanimidade, abriu o caminho para a força militar ser usada, especialistas fizeram avisos claros e que ainda devem ser ouvidos. O International Crisis Group pediu que o foco estivesse numa solução diplomática para restaurar a estabilidade, argumentando que a intervenção poderia exacerbar um conflito étnico crescente. A Amnistia advertiu que "uma intervenção armada internacional pode aumentar a escalada de violações dos direitos humanos que já estamos a ver neste conflito". Paul Rogers, professor de estudos de paz na Bradford University argumentou que as guerras passadas mostram que "uma vez iniciadas, elas podem tomar direções alarmantes, ter resultados muito destrutivos, e muitas vezes aumentar os próprios movimentos que se destinam a combater".
É concebível que esta intervenção pode – por um tempo – atingir os seus objetivos de empurrar as milícias islâmicas e reforçar o governo do Mali. Mas a guerra da Líbia foi vista como um sucesso, também, e aqui estamos agora, envolvidos com a seu efeito bumerangue catastrófico. No Afeganistão, as forças ocidentais permanecem empenhadas numa guerra sem fim, que já ajudou a desestabilizar o Paquistão, levando a ataques que mataram centenas de civis e desencadeando mais caos. O preço das intervenções ocidentais pode muitas vezes ser ignorado pelos nossos meios de comunicação, mas ainda é pago.
A intervenção ocidental liderada pela França, apoiada pela Grã-Bretanha e com possíveis ataques dos norte-americanos, sem dúvida, estimula a narrativa promovida pelos grupos radicais islâmicos. Como aponta o professor Rogers, a ação no Mali vai ser retratada como "mais um exemplo de um ataque contra o Islã". Com o alcance rápido e moderno da comunicação, grupos radicais na África Ocidental usarão esta escalada da guerra como prova de outra frente aberta contra os muçulmanos.
É preocupante – para dizer o mínimo – como o primeiro-ministro britânico, James Cameron, conduziu a Grã-Bretanha no conflito do Mali, sem sequer uma pretensão de consulta. As tropas não serão enviadas, dizem-nos, mas o termo "planeamento deficiente" existe por uma razão: é uma escalada que certamente poderá provocar maior envolvimento britânico. O Ocidente tem um histórico terrível de alinhar com o mais duvidoso dos aliados: o lado que escolheram está longe dos direitos humanos que os democratas amam.

Mas as consequências podem ser mais profundas. Além de espalhar caos pela região, a França já mapeou os seus alvos que podem ser atingidos por terroristas, e o mesmo pode acontecer com os seus aliados. É uma responsabilidade de todos nós questionar o que os nossos governos estão a fazer em nosso nome. Se não aprendermos com o que ocorreu no Iraque, Afeganistão e Líbia, então não haverá esperança.





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