Saramago por ele mesmo
"Ao princípio, respondia que escrevia para que gostassem de mim. Depois esta resposta pareceu-me insuficiente e decidi que escrevia porque não me agradava a ideia de ter de morrer. Agora digo, e se calhar é verdade, que, no fundo, escrevo para compreender”
O cético teve de acreditar no milagre. Foi isso que o escritor português José Saramago ouviu dos médicos que trataram do problema respiratório que o abalou, em 2007. Ateu e comunista convicto, ele não se dobra: “Milagre não foi. Devo a vida à qualidade excepcional daqueles médicos e a Pilar, que não deixou que eu morresse”. É a ela que Saramago dedica seu recém-lançado A Viagem do Elefante. Há dez anos Saramago passa ao lado de sua mulher, a jornalista espanhola Pilar del Rio, seus dias de sobrevivente, como se autodefine.
Aguçado por uma viagem a Salzburgo, Áustria, onde conheceu a história do elefante, José Saramago começou este livro em fevereiro de 2007. Escreveu umas 40 páginas e parou por causa da doença. Foram seis meses de pausa. Dois dias depois de receber alta e voltar para casa retomou o texto do que seria, segundo ele mesmo, o livro mais jovial e mais divertido que já escreveu. “Foi escrito em estado de pura felicidade por ter escapado. E mais: saí dessa doença com uma serenidade interior que nunca tinha experimentado. Pilar diz que é um livro cheio de sabedoria... e talvez seja”, disse, emocionado, durante uma sessão de leitura da obra, no fim de novembro, em São Paulo.
Quando publicou seu primeiro romance, Terra do Pecado (1947), Saramago não projetava ainda a carreira de escritor. “Fui escrevendo com uma preocupação: não escrever nada que não tivesse pensado. Sem ambição, sem fazer carreira, só fazendo aquilo que a vida me pedia.” Passou, então, quase duas décadas sem publicar novo livro. “Já há demasiados livros no mundo, se não tenho a dizer nada que valha a pena, para que escrever?”
Durante sua estada em São Paulo, o escritor - que nunca cursou uma universidade, escreveu 41 livros em 30 anos e recebeu o Nobel de Literatura em 1998 - falou sobre sua formação. Vindo de família humilde, mantinha com os pais uma relação distante. “Tive um irmão, dois anos mais velho que eu, que morreu muito cedo, e recordo que a minha mãe, evidentemente de maneira inconsciente, me fez sofrer quando era pequeno, comparando-nos e elogiando o filho desaparecido... Se calhar, é por isso que tenho mais referências de meus avós maternos... mas também não posso idealizar muito essas relações porque eram aldeãos, de vida muita dura, e não tinham muito espaço em sua sensibilidade para o carinho”, diz, em depoimento a Juan Arias em El Amor Possible.
Em seu livro Pequenas Memórias, refere-se ao avô Jerónimo Melrinho, que perdeu em 1948, como um “Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca...” Sobre a avó Josefa Caixinha, morta em 1968, havia escrito um ano antes, no jornal A Capital: “O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vai rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo… Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem te roubou?”
Saramago acredita que a interpretação que damos para as coisas tem a ver com a pessoa que somos e, portanto, com o olhar que temos e a sensibilidade que transportamos. “Quando me vi perante a natureza na minha aldeia Azinhaga, era uma criança. Uma criança simples e pobre, nem sequer precoce. Mas era sensível e sério. E uma criança séria era um bicho um pouco raro. Estava cheio de melancolia, às vezes de tristeza. Gostava da solidão.”
Sua literatura nasce então desse olhar sensível, sério e melancólico sobre o cenário de sua infância, e vai desenvolver-se sob os clássicos portugueses aos quais credita sua influência, como Padre Antonio Vieira, Antero de Quental, Almeida Garret - “em Viagens da Inglaterra vi uma luz a seguir”. Ele lembra também de Kafka como “o maior dos modernos” e destaca a importância de Proust, Borges e Fernando Pessoa -“como é que parimos aquele homem?”
O que a vida pedia
O que a vida pedia
Aos 86 anos, Saramago ainda é o menino com sensibilidade e melancolia à flor da pele. Chorou ao assistir à adaptação de seu livro Ensaio sobre a Cegueira (de Fernando Meirelles) para o cinema, obra emblemática da ausência de virtude, notada pelo escritor, no homem: “Quem quer ser bom hoje, simplesmente bom? O necessário é triunfar, essa é a regra, todos queremos aparecer como triunfadores”. Para ele, sempre pode haver particularidades que tornem o nosso fim, sempre triste, mais chocante. “É o caso do elefante, que fez longa viagem num rigoroso inverno, para ter um triste fim. Uma metáfora que trata da inutilidade da vida, de não conseguirmos fazer da vida mais do que ela é.”
No caso dele, porém, as particularidades da vida foram mais generosas, sobretudo quando, aos 63 anos, conheceu Pilar: “A vida pensou ‘tem de ser agora’, se não, será demasiado tarde. Se tivesse morrido antes de conhecer Pilar, tinha morrido muito mais velho do que sou hoje”.
Cada expressão sua, dita ou escrita, por meios distintos, traz um pouco do homem genial, que respeita os livros, as pessoas e seus defeitos e sabe, como poucos, traduzir toda essa desordem da natureza humana na mais perfeita prosa poética. “Escrever é uma caixinha de surpresas. Espero sempre que às pessoas ocorra: ‘como é que esse sujeito foi pensar nisso?’”. Saramago ensina que é preciso levar em conta “a opinião do livro”, perceber o que ele quer. “Nesse caso (do Elefante), o livro quis ser alegre e eu aceitei, ajudei-o a ser.”
Licença poética
Se você ainda não leu Saramago, estranhará a pontuação usual do autor. As orações dentro de um mesmo período costumam ter seu início identificado pela primeira letra maiúscula, mas são separadas por vírgula, o ponto final só vai no final do período. Falas de personagens não levam aspas, nem travessão, nem as perguntas têm ponto de interrogação, apenas a vírgula separando uma frase da seguinte. Veja este trecho de seu Conto da Ilha Desconhecida:
“...Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões, Sendo assim, vai para a caravela, vê como está aquilo, depois do tempo que passou deve precisar de uma boa lavagem, e tem cuidado com as gaivotas, que não são de fiar, Não queres vir comigo conhecer o teu barco por dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.”
Logo se aprende a entender e a apreciar. Talvez seja bom começar por este que ele considera o mais jovial, A Viagem do Elefante. Ou um dos mais recentes, como As Intermitências da Morte, em que a linguagem rebuscada e a perturbadora pontuação dão espaço a um texto mais leve, rápido e também divertido.
Saramago por ele mesmo | Fundação Perseu Abramo - FPA
BREVE BIOGRAFIA
José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922 — Tías, Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.
Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.
seu livro Ensaio Sobre a Cegueira foi adaptado para o cinema e lançado em 2008, produzido no Japão, Brasil e Canadá, dirigido por Fernando Meirelles (realizador de O Fiel Jardineiro e Cidade de Deus). Em 2010 o realizador português António Ferreira adapta um conto retirado do livro Objecto Quase, conto esse que viria dar nome ao filme Embargo, uma produção portuguesa em co-produção com o Brasil e Espanha.
Nasceu no distrito de Santarém, na extinta província do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias.
A candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, visitou por volta das 17h (13h locais) o velório do escritor José Saramago. "Os grandes escritores são imortais. O que ele fez com a língua portuguesa foi dar a ela uma dimensão global, mostrar que na língua portuguesa se escreveria uma obra-prima", disse a ex-ministra na sua saída.
Dilma disse também que "O Evangelho segundo Jesus Cristo" é sua obra favorita do escritor e colocou Saramago ao lado de Eça de Queiroz e Machado de Assis. "Acho que ele está entre esses grandes escritores que imortalizam a nossa língua e a nossa cultura".
Dilma Rousseff comparece ao velório de José Saramago
Candidata à Presidência da República disse que escritor é um 'imortal'.
Dilma chega para o velório (Foto: AP)
Corpo de Saramago está sendo velado na Câmara Municipal de Lisboa.
Dilma disse também que "O Evangelho segundo Jesus Cristo" é sua obra favorita do escritor e colocou Saramago ao lado de Eça de Queiroz e Machado de Assis. "Acho que ele está entre esses grandes escritores que imortalizam a nossa língua e a nossa cultura".
DE COMUNISTA PARA COMUNISTA
Nenhum comentário:
Postar um comentário