A política pública se torna “chic” e distante do povo quando começar em áreas nobres!
Alguns estão nesta estrada há mais de 20 anos, eu cheguei há pouco menos de 5, e tem alguns que foram ontem comigo para a avenida Paulista que estão a apenas 15km (distância do Peri até lá) na estrada, ou seja, acabaram de desembarcar numa viagem mágica, e certamente suas vidas não serão as mesmas a partir de hoje, 29 de junho de 2015.
Temos provavelmente dois pontos de vista para a importância da inauguração da ciclovia da Paulista, o dos que pedalam e o dos demais. Para nós que pedalamos, sempre o mais importante é o caminho, as dores e amores pra chegar a um determinado ponto, o poder desfrutar da conquista como se fosse a primeira. Para os demais, a bicicleta gerou a discussão de tirar espaço ou não do automóvel, reduzir velocidade, proteger vidas, incluir todos num espaço mais democrático.
O movimento cicloativista ganha repercussão muito lentamente por nascer mais próximo das necessidades humanas e não de uma necessidade produzida por diversas indústrias, desde a imobiliária ou a automobilística, que fabricam necessidades e destroem as relações humanas.
Costumo dizer que as conquistas dos movimentos da bicicleta são sempre a cereja no bolo: são simbólicas e apenas um item do bolo.
Tem muito trabalho para fazer um bolo simples ou mais gourmet, mas quem vai na casa da avó saborear sabe depois de alguns anos a importância das conversas, dos puxões de orelha e do gosto doce que era ficar ali ouvindo sua doce fala.
Ontem na Paulista, apesar da rebeldia do nosso movimento #CicloviaNaPeriferia, queríamos também estar ali, pertencer a algo que por natureza tinha que nos manter calados, porque pra muitos de nós éramos inconvenientes. Vimos aqueles que, apesar de pensar que são da periferia, já negam as suas origens.
O pior homem não é o que não tem solidariedade com o outro, o pior homem é o que não tem solidariedade com o próprio passado!
Já vi, no meio dos ciclistas ativistas, muitas propostas de ações que poderiam atrasar o processo de ocupação, o processo de levar cidadania e discussão para áreas carentes e isoladas.
Falar de ciclovia na periferia jamais atrasaria qualquer implantação da política pública.
Ciclovia na periferia é uma luta por cidadania, por direito à cidade, e muitos ativistas não entenderam o que isso significa. É um grito por tudo que representa o silêncio de quem não tem tempo para militar, nem pela calçada inexistente na porta de casa (já que seu quarto é a porta de entrada), a discussão da mobilidade por transporte público que nos finais de semana é demorado ou simplesmente não existe (por exemplo, em Perus, o trem sempre parado aos domingos), ou o “fitness” na praça descuidada, que não é de alumínio com suas peças enferrujadas, e cadê o parquinho das crianças?
Foi um tapa na cara a gente querer somar, mas seria um estupro coletivo se nós nos isentássemos de ali estar.
Fiz, sim, silêncio nas redes sociais enquanto eu estava lá, pra mim é sempre difícil ir à avenida Paulista, por algum motivo não me encaixo ali. Fui e levei alguns guerreiros silenciosos que romperam a inércia do momento que era pra ser alegre, mas que tinha cara melancólica.
“Aê, não me engana, a zona norte vai além de Santana” — “Já perdi o trem, eu quero ciclovia no Jaçanã também”- “Já quase morri, pedalo todo dia no Jardim Peri”: alguns gritos de guerra que ecoamos solitários na multidão que frequentou ontem a Paulista.
A periferia tá muito ocupada em sobreviver e não se enxerga parte das políticas públicas que surgem a partir do centro, por melhores que elas sejam. Estamos acostumados a ser moeda de troca, a aceitar projetinhos prontos que cabem aqui e que não negamos e usamos, veja os CEUs e Centro Culturais.
Fui fazer um corpo a corpo pra chamar o povo das quebradas pra subir com a gente pra Paulista, aí no sábado véspera subi o morro, sou playba, uso sapatênis, tenho alforge e chamo garrafinha pra água de caramanhola, tenho tempo pra ir nas reuniões durante o dia, inauguração de ciclovia na ZL e ser xingado junto com o Fernando Haddad e a Renata Falzoni de vagabundos, estar em almoço de família e ser vítima daquele olhar “virou um hippie”.
Mas fico quebrado quando ouço no morro coisas assim:
“Mas dá pra chegar até a Paulista de bicicleta, parça?”
“Voltamos no mesmo dia, e como volta?”
“Posso atravessar as pontes sem capacete?”
“Ah… mano nossa bike não guenta ir pra lá, não.”
“Noooossssa, aquela faixa vermelha chegando aqui seria chic.”
“Mãe, mas se tiver aqui a gente pode brincar nelas?” (duas crianças no final da avenida Inajar de Souza)
“Aí, mano, nem vou fazer a foto, isso é ilusão.”
“12 milhões, aqui só vão pintar com tinta que desbota” (dono da bicicletaria Vista Alegre)
Eu percorri na véspera da inauguração do Jardim Flamingo, ao lado do Horto Florestal, até o Parque do Canivete, no Jardim Damasceno, na Brasilândia.
Aqui na zona norte as duas últimas contagens de ciclistas pela Ciclocidade, na avenida Inajar de Souza, mostraram que o número de pessoas usando a bicicleta na avenida supera os 1.400 diariamente, o que seria mais do que necessário para ter uma estrutura.
Não nego minhas origens e não nego que tem surgido muitas ciclovias em várias periferias e que o processo ainda está em andamento. O que tememos é que nossas pontes e vias de fundo de vale fiquem fora da implantação. Planejamento tem, e pronto pra ser executado. Falta coragem política de que, assim como foi enfrentado em Higienópolis e na Paulista, sejam priorizadas avenidas nas periferias. E diga de passagem que não seriam ciclovias para induzir demanda, seria para proteger os já existentes.
Obrigado, vó, pelos bolos feito de pão adormecido com cravo.
Obrigado, avenida Paulista, por mais essa conquista.
(Roberson Miguel, 35 anos, é técnico em informática do Jardim Peri, zona norte paulistana. Desde 2012 utiliza a bicicleta como transporte pra atender seus clientes. É integrante do coletivo CicloZN, membro pela zona norte da Câmara Temática de Bicicleta no Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT).
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