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RELEMBRAMOS O MASSACRE PINHEIRINHO - UMA DAS MAIORES ABERRAÇÕES HUMANITÁRIAS DO NOSSO PAÍS!

A desocupação do Pinheirinho provocou uma avalanche de ações judiciais contra o Estado de São Paulo. A Defensoria divulgou relatório consolidado sobre as ações movidas pelos desalojados. Entre as reclamações, 570 famílias afirmaram que a Polícia Militar atiraram bombas em suas casas, usando até mesmo helicópteros na ação.

Os dados da Defensoria mostram também que integrantes de 239 famílias foram atingidos por balas de borracha. Outras 112 famílias sofreram com violência física e 367, verbal. "Foi um sucesso militar e um fracasso para os direitos humanos", afirmou o defensor público Jairo Salvador de Souza, responsável pelo acompanhamento dos casos. "Houve também a desmoralização dos pais diante dos filhos, de forma proposital, para quebrar a estrutura familiar. Policiais gritavam 'diga para eles que quem manda aqui é o Choque, não você'. Também ameaçavam matar os animais de estimação, caso não desocupassem as casas."
O relatório mostra que 3% das casas foram incendiadas e 34%, demolidas com bens dentro. "Foi um catálogo de erros - 1% da população da cidade de São José dos Campos foi removida de casa em uma manhã", diz Souza. 
Humilhação. O pedreiro Antonio Chaves Gomes, o Ceará, de 32 anos, lembra da forma como foi retirado da casa onde morava havia seis anos. "Peço a Deus para que nunca mais aconteça isso comigo. Foi tudo muito rápido, na base do tiro. Uma humilhação muito grande."
Tristeza. O pedreiro Aguinaldo de Jesus Santos, de 45 anos, que recorda com muita tristeza a ação policial. "Tinha helicóptero em cima e polícia cercando o terreno. Eles jogaram muitas bombas. Mesmo quem queria sair não conseguia."
O que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos, município que possui um dos maiores orçamentos "per capita" do Brasil, pode ser considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país.
Querem dizer que tudo se deu em nome da lei, mas com tal argumento confere-se ao Direito uma instrumentalidade para o cometimento de atrocidades e, pior, tenta-se fazer com que todos os cidadãos sejam cúmplices do fato. Só que o Direito não o corrobora. Senão vejamos.
Na base jurídica do ato cometido está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi invadido, obstruindo-se o direito da posse tranqüila ao seu titular, e, portanto, precisa ser desocupado. Simples assim...
Mas, o direito de propriedade, conforme previsto constitucionalmente, deve atender à sua função social (art. 5º. XXIII, da CF). Sem esse pressuposto nenhum direito de propriedade pode ser exercido.
A Constituição, ainda, garante a todos os cidadãos, como preceito fundamental, o direito à moradia (art. 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF).
Desse ponto de vista, a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva, abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a uma finalidade social, não é mera invasão. Trata-se, em verdade, de uma ação política que visa pôr à prova a eficácia dos preceitos constitucionais, cabendo esclarecer que essa não é uma temática exclusiva do meio rural já que as normas jurídicas mencionadas não fazem essa diferenciação e também a Constituição de 1988 passou a admitir o usucapião de imóveis urbanos (art. 183).
Não se pode esquecer que o Estado atual é o Estado de Direito Social e neste sentido rege-se, juridicamente, pela obrigação de garantir a eficácia dos direitos sociais, constitucionalmente consagrados, não lhe cabendo, portanto, assegurar o direito de propriedade numa perspectiva meramente liberal, até porque também esse direito está vinculado a cumprir uma função social e isso não é retórica, tratando-se de expressão inequívoca da lei.
Em resumo, instalado um tal conflito de ocupação, cabe ao Estado assumir sua responsabilidade perante o problema, desapropriando o imóvel para o fim de integrá-lo a um projeto habitacional, e não fingir que não faz parte do problema, vendo a situação como mero embate entre particulares e, pior, impor uma solução que atenda, exclusivamente, o interesse do direito de propriedade, numa perspectiva liberal, passando por cima de vários outros valores integrados ao ordenamento jurídico como Direitos Fundamentais.
No caso do Pinheirinho o que se viu foi um profundo desrespeito à ordem jurídica.
Entendamos o caso: em 2004, em São José dos Campos, um terreno urbano de um milhão e trezentos mil metros quadrados, foi ocupado por algumas famílias, para fins de moradia. O terreno pertencia a uma empresa falida, Selecta, e estava abandonado. Até antes da ocupação o terreno não cumpria função social alguma. As famílias em questão eram vítimas do “déficit” imobiliário daquele município, numa situação inconcebível, já que São José dos Campos é uma das cidades mais ricas do Brasil.

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. INTERVENÇÃO FEDERAL. ORDEM JUDICIAL. CUMPRIMENTO. APARATO POLICIAL. ESTADO MEMBRO. OMISSÃO (NEGATIVA). PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PONDERAÇÃO DE VALORES. APLICAÇÃO. 1 - O princípio da proporcionalidade tem aplicação em todas as espécies de atos dos poderes constituídos, apto a vincular o legislador, o administrador e o juiz, notadamente em tema de intervenção federal, onde pretende-se a atuação da União na autonomia dos entes federativos. 2 - Aplicação do princípio ao caso concreto, em ordem a impedir a retirada forçada de mais 1000 famílias de um bairro inteiro, que já existe há mais de dez anos. Prevalência da dignidade da pessoa humana em face do direito de propriedade. Resolução do impasse por outros meios menos traumáticos. 3 - Pedido indeferido. (INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 92 - MT (2005⁄0020476-3) - RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES)
No caso Pinheiro esse entrelace de direitos foi solenemente ignorado, a começar pelos aspectos processuais. A ação política da ocupação do terreno teve início em 2004. No mesmo ano, o proprietário do imóvel, a Massa Falida da empresa Selecta, ingressou com a ação de reintegração, mas não obteve decisão liminar favorável à sua pretensão. Interpôs, então, recurso denominado agravo de instrumento, tendo conseguido, junto à 16ª. Câmara do Tribunal de Justiça, a concessão da liminar para a reintegração. Mas, tal decisão, em virtude de vícios processuais formais, foi cassada, mediante mandado de segurança, impetrado pelos moradores. O processo, então, prosseguiu seus trâmites normais, com diversos embates jurídicos, sendo que em 2010 a nulidade do meio processual utilizado pela Massa Falida para tentar reformar a decisão que negou a liminar foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo, então, a decisão inicial, que negou a liminar de reintegração.
Nesse meio tempo, a ocupação foi se organizando ainda mais e se consolidou com a constituição de uma Associação de Moradores, que urbanizou o local com a formação de ruas, praças e a divisão do terreno em lotes com 250 metros quadrados, obedecendo-se, ainda, a regra, fixada pela Associação, de uma família por terreno. Formou-se no lugar um autêntico bairro, com novos moradores, pessoas oriundas da comunidade local, São José dos Campos, trabalhadores com ocupações diversas e também, é claro, desempregados, que para lá se dirigiam e investiam na construção de suas casas, agindo de tal forma, com boa-fé, principalmente em razão do aceno dado pelas três esferas do poder, Federal, Estadual e Municipal, em torno da possibilidade concreta da regularização da situação. Representantes das esferas do Poder visitaram por diversas vezes a comunidade.
E, de repente, em julho de 2011, uma nova juíza atuando no processo, tendo ciência da definição da questão pelo STJ, que consolidava a situação favorável aos moradores, concede liminar para a reintegração de posse, sem motivação específica baseada em fato novo.

É isso mesmo! O que se viu no Pinheirinho teve por fundamento uma decisão liminar, concedida sete anos e meio depois do ingresso da ação de reintegração, não se considerando a alteração fática havida no local, que, em verdade, apenas reforçava as razões para a rejeição da reintegração, ainda mais em sede de decisão liminar. É evidente, pois, a impropriedade da medida, de caráter liminar, insista-se, diante do tempo já decorrido, que eliminou a urgência para esse tipo de solução para um conflito tão complexo, estando, ademais, ultrapassado, há muito, o requisito do ano e dia, e, sobretudo, em razão da profunda alteração fática advinda no local desde o início do processo. Segundo o Censo realizado pela própria Prefeitura de São José dos Campos, já viviam no local 1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615 com idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como também era tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos religiosos e um galpão comunitário.
Bem se vê que a questão envolvia um feixe enorme de direitos, não estando em jogo única e exclusivamente o direito de propriedade da Massa Falida. Assim, ainda que fosse para privilegiar o direito de propriedade da Massa Falida, sem a necessidade de justificá-lo pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que assegurar que outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.

O ato da desocupação, portanto, mesmo se considerada legítima, deveria ser precedido de uma organização tal que permitisse a preservação dos demais direitos envolvidos. Ainda que os moradores se apresentassem armados, dispostos a lutar contra a ordem judicial, as negociações, com todos os meios institucionais possíveis, deveriam conduzir à solução da situação. E, ademais, era o que se anunciava, tanto que a própria Massa Falida assinou documento, levado ao processo da falência, aceitando a prorrogação da efetivação da ordem de reintegração. No Pinheirinho houve até festa para comemorar a reabertura das negociações, que não se encaminhavam, propriamente, em torno da forma de reintegração, mas na direção, enfim, da desapropriação por atuação direta da Federação, o que talvez não interessasse aos propósitos especulativos locais e às pretensões eleitorais dos governos do Estado e do Município.
Assim, o que se verificou na seqüência, já no dia seguinte, foi uma reviravolta inexplicável da postura do Judiciário frente às possibilidades de negociação e a utilização da "trégua" como estratégia para desarmar os moradores, possibilitando a concretização da violência policial, típica de uma guerra, contra os cidadãos do Pinheirinho, ação esta que já estava preparada, por certo, há muitos dias, diante de seu vulto, e que vai ficar para os anais da nossa história, em razão dos efeitos produzidos, como uma das maiores aberrações humanitárias já vistas, ainda que os seus comandantes a queiram apontar como uma ação "limpa", conforme assinalado pelo juiz Rodrigo Capez, assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Em concreto, o Poder Judiciário e o Governo do Estado de São Paulo se uniram contra os moradores do Pinheirinho, tratando-os como inimigos. Não cola o argumento da defesa da legalidade e do resgate da autoridade do ordenamento jurídico, como visto. E mesmo que houvesse, repita-se, por que, depois de quase oito anos de uma situação consolidada, em que um terreno baldio, que servia à especulação imobiliária, foi transformado em um bairro de moradores de baixa renda, teve-se tanta pressa para devolver a posse do terreno à Massa Falida? Por que, para chegar a esse objetivo, mobilizar 2.000 Policiais Militares, helicópteros, cães e armas de todo tipo (ainda que menos letais)? Por que expulsar, de forma abrupta e violenta, pessoas de suas casas na calada da noite de um domingo, fazendo com que essas pessoas deixassem para trás seus pertences, utensílios, roupas e até documentos? Por que fazer tudo isso sem qualquer preocupação com a condição humana dessas pessoas, conduzindo-as a abrigos improvisados, sem condições minimamente dignas de sobrevivência? Por que submeter essas pessoas, nos abrigos, ao uso de pulseiras com cores diferentes, para que pudessem ser identificadas como moradoras do Pinheirinho? Por que deixarem crianças e jovens assistirem tamanha brutalidade contra seus pais? Que mal essas crianças cometeram? Que tamanho mal, ademais, cometeram todos aqueles que lá estavam à procura de um lugar para morar, sendo certo que não era um lugar nenhum pouco glamoroso? Por que passar um trator por cima das casas e estabelecimentos comerciais que foram construídos no local ao longo de oito anos de consolidação do bairro?
Tudo isso para entregar o terreno a uma Massa Falida, que nunca se preocupou com a função social daquela propriedade e que certamente não vai exercer a posse sobre o terreno?
Ora, em nenhuma ponderação de valores que se faça da situação vivenciada, atendendo os pressupostos da razoabilidade e da proporcionalidade, vai se chegar ao peso que foi dado ao interesse da Massa Falida, valendo acrescentar que a empresa em questão, Selecta, proprietária do imóvel, também ela, nunca cumpriu qualquer função social, jamais tendo produzido um alfinete sequer, vez que foi constituída apenas para servir de fachada nas intermediações de negociações imobiliárias das empresas de um grupo econômico. 
Alguma razão não muito clara, que pode ser, por hipótese, um melindre entre as esferas de Poder Estadual e Federal, já que uma autorizava a reintegração e a outra a recusava, ou que pode ser a necessidade do governo estadual de afirmar sua autoridade diante dos movimentos sociais, sobretudo diante do alcance eleitoral que a questão atingiu, foi determinante para que a Justiça Estadual, em ato que chegou a ser reivindicado pelo Presidente do Tribunal, que enviou assessor direto para cuidar do assunto, passasse por cima de todos os Direitos Humanos envolvidos e determinasse a reintegração da posse, sendo auxiliada, com a maior presteza possível, pelo governo Estadual, que, com a intervenção direta do próprio governador, autorizou a instauração de uma ação de guerra contra os cidadãos do Pinheirinho.
É isso mesmo! Os nossos co-cidadãos foram vítimas de uma ação militar típica de guerra, que foi programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo, precisou ser executada passando por cima até do acordo judicial assinado pelas partes, no processo da falência, em torno da suspensão da reintegração. E um dado extremamente importante deve ser destacado, que torna a origem da ação policial, a mando do Estado de São Paulo, ainda mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do processo de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial não estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que estava impondo aos moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: "A operação me surpreendeu, positivamente."

Seja como for, o fato é que os cidadãos do Pinheirinho foram tratados como inimigos do Estado. Foram presos sem processo, já que ficaram várias horas impossibilitados de sair do assentamento, enquanto a Polícia mantinha luta aberta contra moradores do bairro vizinho que se insurgiram contra ação policial intentada no local. Foram marcados como se estivessem em um campo de concentração. Foram desalojados. Foram conduzidos, por força, a um local inabitável, sem qualquer condição de higiene, não tendo havido, inclusive, qualquer cuidado especial com crianças, idosos e doentes. Ou seja, foram profundamente agredidos em sua dignidade. Registre-se, a propósito, que se trata de Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º. III, CF) e que constituem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º., CF), valendo lembrar, ainda, que o Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais pela "prevalência dos direitos humanos" (art. 4º. II, CF).
Os moradores do Pinheirinho, inclusive, tiveram o seu direito de propriedade, com relação aos seus pertences, desrespeitado e continuam, ainda hoje, sem que o Estado reconheça sua responsabilidade quanto ao problema do qual tudo se originou: a ausência de moradia.
Em concreto, aquelas pessoas, que de boa-fé puderam acreditar em um projeto de vida, por mais precário que fosse, com a formação do Pinheirinho, estão agora mendigando local para se alojar e, de certo modo, estão sendo tratadas como animais.
E o pior disso tudo é que essa situação foi imposta pelas forças institucionalizadas do Estado, cuja função seria a de, em primeiro plano, proteger o cidadão. E, ademais, quem vai pagar pela operação realizada? Os custos da operação serão calculados e inseridos no processo? Certamente não e a sociedade como um todo, portanto, arcará com a despesa que se fez necessária para a prática do ato destinado à defesa da posse de um terreno privado e que, ao mesmo tempo, soterrou vários Direitos Humanos. Vai se dizer que o governo estadual colaborou com a Justiça para a efetivação de uma ordem judicial, mas esse mesmo governo não se tem mostrado nenhum pouco colaborador no que se refere às decisões judiciais que visam o resgate da autoridade dos direitos sociais de incontáveis cidadãos. O Estado de São Paulo deve cerca de R$20 bilhões em precatórios, que se arrastam interminavelmente, sendo R$15 bilhões a título de créditos trabalhistas e previdenciários.
O Estado se mostrou eficiente para preservar o direito de propriedade, mas não demonstrou a mesma presteza para garantir a essas pessoas uma moradia digna e para reparar as agressões as vítimas. Salienta-se que o Estado de São Paulo focou no enfrentamento aos movimentos sociais, de desrespeito às liberdades democráticas e de ataque à pobreza por meio de força bruta.


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