O exemplo argentino evidencia o imenso poder do setor financeiro privado no mundo atual; mostra como a corte suprema do país mais rico do mundo pende em defesa de um questionável fundo abrigado em paraíso fiscal, em detrimento de um país.
“Existem diversas contradições nesse episódio”, declara Maria Lúcia Fattorelli (AUDITORA FISCAL) ao comentar a dívida pública argentina, que já alcança o montante de 1,3 bilhão de dólares. Entre elas, aponta, o “absurdo evidenciado pela condenação de um país por uma decisão proferida pelo poder judiciário de outro país, ignorando a soberania nacional que cada país possui”.
Segundo a auditora fiscal, essa situação “revela a ausência de tribunais internacionais independentes e transparentes, que seriam os fóruns legítimos para analisar esse tipo de conflito”.
A dívida da Argentina foi negociada, mas alguns credores não aceitam a negociação e cobram do país o pagamento integral da dívida, o qual foi determinado pela Justiça norte-americana. Segundo Maria Lúcia, a decisão judicial foi “tendenciosa” e “pendeu em favor de especuladores que se aproveitaram da crise enfrentada pela Argentina a partir de 2001, adquiriram títulos da dívida pública daquele país a preços irrisórios, não se apresentaram para efetuar a renegociação realizada em 2005 e ingressaram na Justiça para reivindicar o pagamento do valor nominal integral daqueles títulos, acrescido dos juros incidentes sobre o valor nominal desde a sua emissão. Ou seja, reivindicaram a restituição de algo que nunca emprestaram, uma reivindicação infame e completamente ilegítima”.
Na avaliação da auditora fiscal, as dívidas públicas dos países têm permitido a interferência do setor financeiro em políticas e decisões governamentais estratégicas. “Esse poderio financeiro sobre as nações é obtido, principalmente, por intermédio do financiamento de ditaduras ou de campanhas eleitorais ‘democráticas’, conseguindo, dessa maneira, dominar o poder político e subordiná-lo aos interesses do capital financeiro para, em seguida, alcançar as modificações das estruturas legais em seu favor e de acordo com os seus interesses”, assinala.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela explica as razões da dívida pública argentina e afirma que no Brasil também se assiste a um processo de endividamento público, “que inicia com financiamento de campanhas, seguido da adoção de modelo econômico e medidas que favorecem o setor financeiro, principalmente através do Sistema da Dívida. Estamos pagando dívidas ilegais e negando direitos sociais básicos. O Orçamento Geral da União de 2014 destina 42% dos recursos para juros e amortizações de uma dívida que nunca foi auditada, em flagrante violação à Constituição Federal de 1988, que determinou a realização da auditoria da dívida brasileira”.
Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública – CAIC no Equador em 2007-2008. Participou ativamente nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida realizada no Brasil. É autora deAuditoria da Dívida Externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora, 2003).
Confira a entrevista.
Foto: sindifiscopb
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IHU On-Line - Quais são as principais contradições em torno da dívida da Argentina e da maneira como a questão está sendo conduzida, já que o país diz ter pago o valor negociado, mas a Justiça americana exige o pagamento integral da dívida?
Maria Lúcia Fattorelli - Existem diversas contradições nesse episódio. Creio que a mais relevante decorre do absurdo evidenciado pela condenação de um país por uma decisão proferida pelo poder judiciário de outro país, ignorando a soberania nacional que cada país possui. Essa contradição revela a ausência de tribunais internacionais independentes e transparentes, que seriam os fóruns legítimos para analisar esse tipo de conflito.
Outra grande contradição é o flagrante privilégio da tendenciosa decisão judicial que pendeu em favor de especuladores que se aproveitaram da crise enfrentada pela Argentina a partir de 2001, adquiriram títulos da dívida pública daquele país a preços irrisórios, não se apresentaram para efetuar a renegociação realizada em 2005 e ingressaram na Justiça para reivindicar o pagamento do valor nominal integral daqueles títulos, acrescido dos juros incidentes sobre o valor nominal desde a sua emissão. Ou seja, reivindicaram a restituição de algo que nunca emprestaram, uma reivindicação infame e completamente ilegítima. A justiça norte-americana deu ganho de causa a esse grupo de especuladores, transformando carniça podre em filé mignon, referendando a jogada desses especuladores, não por acaso apelidados de “abutres”, e humilhando um país soberano.
Outra contradição está relacionada ao risco de essa decisão da Justiça norte-americana afetar os termos da renegociação feita pela Argentina em 2005, e impor ônus abusivo ao país. Esse risco decorre de cláusulas que regem os títulos de dívida externa argentina. Tais cláusulas estão presentes nas emissões de títulos de dívida externa de diversos países, inclusive o Brasil, pois esses contratos são padronizados por um reduzido grupo de bancos privados internacionais que comandam o Sistema da Dívida. Uma dessas cláusulas tenta impedir que o país emissor dos títulos negocie de forma separada com determinados grupos de credores. É a denominada cláusula“pari passu”, que estabelece que qualquer ganho obtido por um grupo de detentores de títulos tem que ser estendido a todos os demais detentores. Por causa dessa cláusula, os 92% de detentores de títulos que renegociaram a dívida em 2005, com 75% de deságio, poderão reivindicar a diferença. Isso seria um absurdo completo, porque aquela renegociação foi feita com taxas de juros elevadíssimas, vinculadas ao crescimento do PIB argentino, para compensar o deságio. E a grande contradição decorre do fato de que os “abutres” nem participaram daquela negociação.
Enfim, são muitas contradições, e elas não tiveram início em 2001, mas muito antes. Estão presentes em toda a trajetória do processo de endividamento do país.
"Outra contradição está relacionada ao risco de essa decisão da Justiça norte-americana afetar os termos da renegociação feita pela Argentina em 2005, e impor ônus abusivo ao país"
IHU On-Line - Você poderia explicar melhor essa trajetória da dívida argentina que mencionou?
Maria Lúcia Fattorelli - A trajetória da dívida externa argentina é muito parecida com a de diversos países latino-americanos:
- origem em governos ilegítimos (ditaduras militares) em processos não transparentes, sem a devida comprovação da contrapartida da dívida, com suspeitas de que essa foi utilizada para financiar a própria ditadura;
- contratadas, em sua maior parte, com bancos privados internacionais, sujeitas a taxas internacionais de juros (Libor e Prime), que flutuam sob a influência dos próprios bancos privados internacionais que controlam o FED e a Associação de bancos de Londres;
- impactadas fortemente pela brutal elevação unilateral das taxas Libor e Prime, que saltaram de cerca de 5% ao ano para mais de 20% ao ano, provocando a crise de 1981 e a multiplicação da dívida por ela mesma;
- estatização de dívidas privadas, ou seja, transformação de dívidas privadas (de grandes empresas e bancos) em dívidas públicas, a cargo do Banco Central;
- suspeita de prescrição da dívida externa com bancos privados internacionais em 1992 (no Equador esse fato foi comprovado pela auditoria oficial realizada naquele país);
- transformação em títulos negociáveis no mercado, no processo denominado “Plano Brady”, realizado em 1994 em paraísos fiscais e repleto de ilegalidades;
- emissão continuada de títulos da dívida externa, com a participação dos bancos privados internacionais em todo o processo. Em seguida, tais títulos da dívida externa passaram a ser aceitos como “moeda” na compra de empresas privatizadas na década de 90.
Todos esses passos aqui resumidos se repetiram em diversos países.
Todos esses passos aqui resumidos se repetiram em diversos países.
É preciso ressaltar a intervenção do FMI diante da crise provocada pela alta unilateral dos juros a partir do início dos anos 80, marcada pela imposição de planos de ajuste fiscal para que “sobrassem” recursos para pagar a dívida aos bancos privados internacionais. A Argentina chegou a ser elogiada por ter obedecido de forma tão diligente às determinações do Fundo.
Essa contextualização é importante para compreender que a Argentina chegou à crise, em 2001, depois de acatar por anos seguidos as nefastas exigências do FMI que comprometeram a capacidade econômica do país. Além de tudo isso, no caso da Argentina uma decisão judicial inédita considerou ilegal grande parte da dívida pública.
IHU On-Line - Em que aspectos a dívida pode ser considerada ilegal?
Maria Lúcia Fattorelli - A dívida pública da Argentina já foi considerada ilegal pela Justiça daquele país, em 2000, na famosa “Causa Olmos”, assim denominada em homenagem ao jornalista argentino Alejandro Olmos que, em 1982, teve a iniciativa de impetrar ação judicial denunciando a ilegalidade da dívida.
Essa ação judicial levou a uma investigação que se aproxima de uma auditoria em vários aspectos, e foi concluída com uma importante sentença judicial, em junho de 2000, que reconheceu a existência de diversos delitos e irregularidades, além da clara responsabilidade do Fundo Monetário Internacional nas operações.
Por ocasião da elaboração do nosso livro Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos, o filho do autor da mencionada ação judicial — Alejandro Olmos Gaona — contribuiu com importante relato que elenca uma série de irregularidades apontadas pelos peritos que participaram da investigação determinada pelo poder judiciário naquela ação:
"O setor financeiro deve existir para servir à economia real, e não o contrário"
“As perícias determinaram:
a. Que a dívida externa não tinha justificativa legal, nem administrativa, nem financeira.
b. Os procedimentos utilizados pela autoridade econômica foram discricionários e revelam transgressões, irregularidades, comportamentos e gestões que configuram verdadeiros atos ilícitos.
c. As empresas públicas foram obrigadas a endividar-se, embora não tivessem necessidade de financiamento.
d. Em muitos casos as empresas estatais foram obrigadas a contrair empréstimos com bancos estrangeiros para pagar dívidas com bancos nacionais.
e. Os recursos correspondentes aos empréstimos em dólares tomados pelas empresas estatais iam diretamente para o Banco Central, que lhes entregava pesos (moeda argentina) que se desvalorizavam.
f. Houve malversação de fundos.
g. As reservas internacionais correspondiam a empréstimos do sistema bancário internacional que nunca chegavam ao país e eram aplicados nos mesmos bancos credores a uma taxa inferior, causando perda de enormes somas de dinheiro.
h. A dívida externa fraudulenta das empresas privadas foi assumida pelo Estado em 1982.
i. Os avais a empresas públicas e privadas concedidos pelo Banco Central tiveram que ser pagos por esta instituição, que nunca reclamou das empresas o seu reembolso.”
Constata-se, assim, que além de muitas ilegitimidades, ocorreram também flagrantes ilegalidades no processo de endividamento argentino.
IHU On-Line - Quais as razões de o país ter contraído uma dívida tão alta, considerada “materialmente impagável” por alguns economistas? É possível identificar quais são os mecanismos financeiros que fizeram a dívida da Argentina chegar ao atual patamar?
Maria Lúcia Fattorelli - A maior parte dessa dívida nunca foi contratada; ou seja, grande parte do que está registrado como “dívida” corresponde, na realidade, a diversos mecanismos que já mencionei nas respostas anteriores, sendo que os mais infames correspondem à geração de dívidas sem contrapartida durante a ditadura, a transformação de dívidas privadas em públicas e os processos de salvamento bancário por meio de geração de dívidas públicas.
Nesses processos o dinheiro nunca chega aos cofres públicos, mas o valor é contabilizado como “dívida”. Dívidas sem contrapartida se tornam um ônus insustentável. É por isso que defendemos a realização de completa auditoria do processo de endividamento público.
Processos de endividamento
Temos estudado o processo de endividamento em diversos países, e as evidências se repetem em vários deles. As dívidas são geradas por processos questionáveis, sem transparência, e sem qualquer contrapartida em bens, serviços ou benefícios para a coletividade. Em seguida, são multiplicadas por diversos mecanismos que provocam o seu contínuo crescimento, utilizando-se de juros excessivos, juros sobre juros, taxas diversas, comissões e custos financeiros abusivos; condições viciadas; sucessivos refinanciamentos que provocam o aumento da dívida, entre outras estratégias que provocam a autogeração contínua de novas dívidas. Esse esquema exige constante entrega de recursos para o pagamento de elevados juros, comissões e outros gastos, enquanto o saldo da dívida segue aumentando. A essa utilização do endividamento público às avessas denominamos “Sistema da Dívida”.
As dívidas geradas e multiplicadas dessa forma se tornam impagáveis ao longo dos anos e geram crises periódicas. E quando vem a crise, intervém o FMI, com seus planos de ajuste fiscal e antirreformas, baseadas em cortes de direitos sociais para priorizar o pagamento de dívidas públicas, aprofundando os problemas econômicos do país.
É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A AUDITORIA é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo.
O Equador provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007 o presidente Rafael Correa editou o Decreto 472, mediante o qual criou uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e externa equatoriana, nomeando diversos membros nacionais e seis internacionais. Todos os membros internacionais eram vinculados a alguma instituição relacionada ao questionamento do endividamento público, por isso tive a honra de ser uma dessas seis pessoas, representando a Auditoria Cidadã da Dívida. O resultado do trabalho foi impressionante, pois respaldou o ato soberano do presidente, que permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos (bônus global 2012 e 2030). Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e educação, como mostra o gráfico a seguir, que demonstra a queda dos gastos com a dívida ao mesmo tempo em que retrata o aumento dos investimentos sociais:
IHU On-Line - O que a dívida da Argentina revela sobre o funcionamento do mercado financeiro e da ação dos Estados em relação aos recursos nacionais?
Maria Lúcia Fattorelli - O exemplo argentino evidencia o imenso poder do setor financeiro privado no mundo atual; mostra como a corte suprema do país mais rico do mundo pende em defesa de um questionável fundo abrigado em paraíso fiscal, em detrimento de um país.
Em nosso livro Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos, analisamos brevemente a concentração de poder, controle e propriedade dos negócios mundiais nas mãos do setor financeiro. Essa concentração brutal tem permitido a interferência desse setor em políticas e decisões governamentais estratégicas. Esse poderio financeiro sobre as nações é obtido, principalmente, por intermédio do financiamento de ditaduras ou de campanhas eleitorais “democráticas”, conseguindo, dessa maneira, dominar o poder político e subordiná-lo aos interesses do capital financeiro para, em seguida, alcançar as modificações das estruturas legais em seu favor e de acordo com os seus interesses.
Estamos vivendo a fase aguda do capitalismo financeirizado: a associação dessa brutal concentração de poder com a ausência de regulamentação financeira, exacerbando o domínio do setor financeiro e deixando sem limites a sua atuação.
No Brasil também assistimos esse processo, que inicia com financiamento de campanhas, seguido da adoção de modelo econômico e medidas que favorecem o setor financeiro, principalmente através do Sistema da Dívida. Estamos pagando dívidas ilegais e negando direitos sociais básicos. O Orçamento Geral da União de 2014 destina 42% dos recursos para juros e amortizações de uma dívida que nunca foi auditada, em flagrante violação àConstituição Federal de 1988, que determinou a realização da auditoria da dívida brasileira.
"Atualmente o setor financeiro ocupa uma posição extremamente privilegiada, atuando à vontade, com acesso a paraísos fiscais"
IHU On-Line - Diante deste caso, como deveria ocorrer uma regulamentação do mercado financeiro?
Maria Lúcia Fattorelli - O setor financeiro deve existir para servir à economia real, e não o contrário. Atualmente o setor financeiro ocupa uma posição extremamente privilegiada, atuando à vontade, com acesso a paraísos fiscais, sigilo bancário e uma série de privilégios que protegem tanto as grandes instituições como os fundos abutres.
Algumas medidas já foram debatidas mundialmente, como a “taxa Tobin”, por exemplo, que prevê a taxação de cada transação financeira, a fim de identificar cada operação. Outras ideias relacionadas à exigência de transparência esbarram no privilégio do sigilo bancário. Há movimentos internacionais que lutam pelo fim dos paraísos fiscais, mas também esbarram no poderio financeiro instalado nas grandes potências.
Aqui na América Latina há um grande debate em andamento desde 2007, em favor de uma Nova Arquitetura Financeira Regional (NAFR), mas aqui no Brasil esse importante debate está muito atrasado.
A NAFR, tal como se desenvolve atualmente, se ergue sobre três pilares principais: o Banco do Sul (banco de desenvolvimento), o Fundo Comum de Reservas do Sul (fundo para a estabilidade monetária e taxas de câmbio) e oSistema Único de Compensação Regional de pagamentos (organização comercial).
O objetivo é alcançar uma maior autonomia econômica e financeira para favorecer o desenvolvimento sustentável soberano, em um marco de integração regional [1].
Um dos princípios da NAFR é a construção de um sistema financeiro regional soberano, democrático e transparente, orientado para um novo modelo de desenvolvimento, e que esteja a serviço das pessoas, de forma inclusiva e equitativa. Já foi aprovada pelos parlamentos de cinco países — Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela¬ —, mas ainda necessita de mais adesões.
IHU On-Line - Como a dívida da Argentina tem repercutido entre os diversos Estados? É possível identificar uma posição de algumas nações em relação à situação da Argentina?
Maria Lúcia Fattorelli - O Brasil e outros países da América Latina têm defendido uma solução diplomática para esta questão. Porém, o ideal seria que todos os países se unissem para avançar o processo de implantação de uma Nova Arquitetura Financeira Regional, bem como para realizar auditoria das dívidas, para investigar e trazer à luz como todas as dívidas foram contratadas e por que cresceram, assim como feito pelo Equador. Seria uma grande oportunidade dos governos responderem à altura contra esta humilhação imposta pelo capital financeiro.
IHU On-Line - Qual é a situação econômica da Argentina, considerando o altíssimo valor da sua dívida pública? Qual tem sido o impacto da dívida da Argentina no orçamento federal?
Maria Lúcia Fattorelli - O serviço (juros e principal) da dívida argentina tem tido um peso importante no orçamento público e tem aumentado aceleradamente a cada ano, principalmente devido à aplicação de taxas de juros vinculadas à variação do PIB.
IHU On-Line - A Argentina poderia ter evitado a sua dívida pública na proporção em que está? Como?
Maria Lúcia Fattorelli - Sem dúvida. A partir do respaldo contido na sentença judicial da “Causa Olmos” proferida no ano 2000, poderiam ter prosseguido com os trabalhos, realizado a auditoria da dívida e adotado medidas soberanas, como fez o Equador.
Ainda há tempo, pois os crimes cometidos por esse processo de endividamento ilegal e ilegítimo provocou danos sociais e humanos irreparáveis, que são considerados crimes de ação continuada, e não prescrevem.
Os chamados fundos abutres, que ganharam da Argentina um milionário litígio na Justiça americana para receber integralmente o valor da dívida de bônus em moratória compradas a preço de lixo, são propriedade de poderosos magnatas com destreza magistral para fazer dinheiro com países e empresas em crise.
Os querelantes, acusados pela Argentina de extorsão e com os quais agora deverá se sentar para negociar para evitar uma moratória com os credores da parte reestruturada da dívida, compraram bônus em moratória do país sul-americano há quatro anos com o objetivo de concretizar nos tribunais um negócio milionário.
Os fundos abutres ganharam da Argentina um litígio na Justiça americana para receber o valor da dívida do país. EFE/Arquivo
Compraram em 2008 títulos da moratória em 2001 por um valor nominal de US$ 428 milhões, mas na realidade pagaram por esses papéis, considerados "lixo" no mundo financeiro, muito menos do que isso, cerca de US$ 0,30 ou 0,40 para cada US$ 1 nominal do título, segundo o governo argentino.Esses papéis foram adquiridos de investidores que se recusaram a aceitar a proposta de reestruturação de dívida de 2005, quando os títulos da dívida pública que caíram em moratória no final de 2001 foram renegociados.
Naquela troca a Argentina conseguiu uma remissão da dívida de 65% sobre o capital original e uma adesão de 75% do total dos credores. Ela foi reaberta em 2010, operação que atingiu 92,5% de adesão dos credores à renegociação.
Os que rejeitaram esses refinanciamentos são tecnicamente denominados "holdouts", com uma dívida a seu favor, entre capital e juros, avaliada em US$ 15 bilhões, segundo dados do governo argentino.
São credores individuais e institucionais de Alemanha, Japão, Estados Unidos, Itália - neste caso milhares de aposentados - e também da Argentina.
Desse grupo, os fundos de investimento especulativos representam apenas 1%, mas têm sentença favorável para cobrar US$ 1,5 bilhão, entre capital e juros, mas são os mais beligerantes, com poder de fogo suficiente para contratar poderosos escritórios de advogados e montar um lobby, com tempo suficiente para esperar pela carniça.
Mais da metade do montante reclamado está nas mãos do fundo de investimento NML Capital, controlado por Elliot Management Corporation, conglomerado fundado em 1977 em Nova York com um capital inicial de US$ 1 milhão e que hoje tem ativos de US$ 23 bilhões.
O grupo, majoritariamente dedicado aos negócios financeiros, já tinha feito jogadas semelhantes com a Argentina, comprando bônus em moratória de Peru e Congo.
Já a Elliot é propriedade de Paul Singer, um milionário, advogado de profissão, de tendência conservadora, que financiou campanhas políticas de republicanos como Mitt Romney e Rudy Giuliani, tem fama de filantropo e é membro do conselho da administração da Escola de Medicina de Harvard.
Singer é criador da American Task Force Argentina (Afta), que faz lobby entre juízes, legisladores e meios de comunicação para convencê-los de seus argumentos no litígio entabulado contra a Argentina nos tribunais de Nova York.
Em sua batalha contra a Argentina, a NML Capital conseguiu, entre outras coisas, embargar em 2012 a fragata Liberdade, embarcação da Marinha argentina, enquanto estava ancorada em um porto de Gana.
Outro dos fundos querelantes é o EM, de propriedade do magnata Kenneth Dart, residente nas Ilhas Cayman, famoso por ganhar um julgamento do Brasil após comprar bônus "lixo" aqui e por ser o dono da maior fabricante de copos térmicos dos Estados Unidos, cuja filial na Argentina foi denunciada em 2013 pelo Fisco por supostas superfaturações e fuga de divisas.
Outro dos grandes querelantes que a Argentina tem é o fundo Aurelius, de Mark Brodsky, também magnata e advogado como Singer, e que já trabalhou no mesmíssimo NML.
Brodsky foi batizado de "Exterminador" pelo jornal britânico "Independent" devido à pouca flexibilidade como credor e pela fama de fazer suculentos negócios comprando bônus de empresas em crise para depois permutá-los por ações e voltar a ser seu dono.
Além desses três grandes "abutres" que espreitam a Argentina, há outros 44 'passarinhos' que, como os fundos de investimento, também estão no litígio, um verdadeiro bando de aves de rapina.
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