Caso de jornalistas processados por ‘traição à pátria’ causa comoção na Alemanha por denunciar planos secretos dos serviços de informação (BfV) objetivando intensificar a vigilância na Internet.
Alemanha persegue jornalistas
Andre Meister e Markus Beckedahl, dois profissionais do blog alemão de investigação Netzpolitik.org, tornaram-se alvo de um inquérito judicial pela publicação de dois artigos sobre a existência de planos secretos dos serviços de informação (BfV) para intensificar a vigilância na Internet.
O escândalo começou em fevereiro, quando o site investigativo NetzPolitik.org publicou documentos sigilosos que indicavam a intenção do governo alemão de expandir o monitoramento de atividades online de cidadãos.
Entre as propostas, estava a criação de uma unidade especial dos serviços de inteligência para vigiar as redes sociais.
Depois do anúncio dos jornalistas, publicações em toda a Alemanha classificaram o caso como "ataque à liberdade de expressão" da imprensa, e milhares de pessoas foram para as ruas da capital do país, Berlim, protestar.
Para entender tamanha indignação contra ameaças à privacidade do cidadão, é preciso lembrar do passado recente da Alemanha, começando no período nazista, quando a polícia secreta, a Gestapo, espionava cidadãos e censurava qualquer publicação.
Stasi
Mais tarde, na Alemanha Oriental, a Stasi desempenhou um papel parecido para o governo comunista.
Por isso, direitos individuais e o papel da imprensa são muito mais que debates teóricos no país.
A dolorosa lembrança dos abusos de Estados totalitários também estava por trás da onda de indignação causada pelas revelações de escutas telefônicas dos Estados Unidos na Alemanha.
Esta é possivelmente também a explicação para o fato de o ex-agente de inteligência americano Edward Snowden ser considerado praticamente um herói no país, principalmente entre alemães de esquerda.
O assunto tomou proporções tão grandes que dias depois de vir à tona, levou à aposentadoria forçada do procurador-geral alemão, Harald Range.
Range, o principal defensor das investigações sobre os jornalistas, se tornou o primeiro procurador-geral a ser demitido pelo governo alemão, após perder o apoio da primeira-ministra Angela Merkel e do ministro do Interior.
'Interferência'
Mas, a oposição agora quer um inquérito para apurar porque os ministérios da Justiça e do Interior permitiram a abertura das investigações sobre os jornalistas.
O próprio Range afirmou que o seu afastamento seria uma interferência do governo na Justiça.
Para ele, não seria aceitável que políticos "influenciem uma investigação porque é possível que as conclusões não sejam politicamente convenientes".
Meister e Beckedahl também querem saber se foram espionados pelas autoridades.
"Para nós, como jornalistas que acreditam no império da lei, a sensação é de ter entrado num pesadelo, num Estado repressivo, em que é possível espionar jornalistas investigativos", disse Beckedahl ao canal de televisão alemão ARD.
"Nunca imaginei que isso pudesse acontecer."
O caso parece estar longe de um fim. Várias perguntas cruciais ainda não foram respondidas.
O que é um segredo de Estado? Quais são os limites para o que jornalistas podem publicar? E na época das redes sociais e da imprensa online, qual é mesmo a definição de jornalista?
Para os críticos, o fato de uma investigação ter sido lançada e suspensa quando o lado político pesou não ajuda a responder nada disso. Na pior das hipóteses, dizem, prova que o aparecimento de outro escândalo parecido é só questão de tempo.
Acusações de "traição contra a pátria" contra a imprensa na Alemanha:
- 1962: Acusações de traição contra a revista Der Spiegel por uma reportagem que alegava que o exército da Alemanha Ocidental não seria capaz de defender o país no caso de um ataque comunista. Dois editores foram presos, mas um tribunal decidiu posteriormente em favor da revista e o ministro da Defesa, Franz Josef Strauss, foi obrigado a deixar o cargo.
- 1982: A redação e residências de jornalistas da revista de Hamburgo Konkretforam investigados pela polícia, depois da publicação das memórias de um agente secreto.
- 2005: A redação da revista política mensal Cicero e a casa de um de seus jornalistas foram inspecionados pela polícia. O jornalista havia publicado uma reportagem sobre um extremista islâmico, na qual eram citados diversos documentos confidenciais. Mais tarde, o tribunal constitucional alemão alegou que as autoridades haviam atuado de forma anticonstitucional.
- 2015: Dois jornalistas do site Netzpolitik.org foram investigados por "traição" por publicar documentos que detalhavam planos do governo para incrementar a vigilância online, como parte de medidas antiterror.
Na semana passada, os jornalistas Markus Beckedahl e Andre Meister anunciaram que estavam sendo investigados por suposta "traição à pátria", detonando uma polêmica de âmbito nacional.
As revelações, feitas em 25 de Fevereiro e 15 de Abril últimos, basearam-se em documentos confidenciais do BfV (Departamento para a Protecção da Constituição).
No final de Julho soube-se da decisão da procuradoria federal da Alemanha de abrir um inquérito preliminar contra os dois jornalistas por suspeita de «alta traição», uma acusação grave, que poderia implicar penas de prisão de pelo menos um ano.
De imediato houve protestos tanto da parte de organizações de jornalistas nacionais e internacionais, como de algumas forças políticas, que denunciaram o ataque à liberdade de imprensa e condenaram o processo judicial.
A Federação Europeia de Jornalistas (FEJ) exigiu em comunicado que as autoridades alemãs respeitem o direito dos jornalistas de «informar os cidadãos e de servir o interesse público», notando que está em causa a violação do direito dos cidadãos à privacidade.
A FEJ e a Federação Internacional de Jornalistas apresentaram queixa deste caso à Plataforma de Proteção dos Jornalistas do Conselho da Europa.
Vendo-se sem campo de manobra, o procurador federal alemão deu um passo atrás, anunciando, dia 31 de Julho, a suspensão do processo e a sua substituição por uma peritagem para apurar se os documentos publicados estão ou não abrangidos pelo segredo de Estado.
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