Oportunismo insano do presidente, vacilações da oposição liberal e paralisia da esquerda deram à ultra-direita controle das ruas. EUA e Europa são co-responsáveis
Por Oleg Yasinsky, na Agência Rebelión | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Violência e gangsterismo marcam ação do governo e manifestantes. Agora, todos os possíveis desfechos parecem negativos. Por Igor Storchak
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Uma vez, já faz tempo, trabalhando com turismo, tínhamos que organizar um voo para uma ilha do Pacífico. Os pilotos explicaram que para obter permissão de decolagem, era preciso primeiro ter a confirmação da aterrizagem bem sucedida do avião que chegou antes, já que no caso de um acidente na pista, um segundo avião não teria onde aterrizar, e uma vez passado o ponto de não-retorno, definido pela distância e pela reserva de combustível, o avião a caminho simplesmente ficaria sem opções. Lembro-me o quanto me impressionou esse conceito de “ponto de não-retorno”, que escutei então pela primeira vez. Também me perguntei se o termo seria aplicável à historia das sociedades. Depois dos últimos acontecimentos no meu país, a Ucrânia, lembrei-me disso e voltei às mesmas perguntas.
Depois da trágica e fulminante queda da União Soviética, a Ucrânia, sua segunda república depois da Rússia em população e nível de desenvolvimento, entrou no turbulento período de sua história independente. Apesar de uma infinidade de problemas econômicos e políticos, à diferença dos seus vizinhos, a Ucrânia permaneceu neste quarto de século sob uma invejável paz social, e meus compatriotas reiteraram-me várias vezes o mito narcisista e sedutor do “caráter nacional pacífico” dos ucranianos, tão diferente do arco que vai dos bósnios aos chechenos, de gente capaz de tanta barbárie.
A partir de meados de janeiro deste ano, ninguém mais vai acreditar nesse conto. Derramou-se sangue. Desde a libertação de Kiev da ocupação nazista em 1944, a capital ucraniana não via cenas desse tipo. Os principais meios noticiosos do mundo mostraram Kiev em chamas, milhares de manifestantes, policiais, armas, bandeiras e outras figuras midiáticas, como sempre, praticamente sem qualquer contexto, entorpecendo o espectador com a sua usual anedota da luta do bem contra o mal ou da democracia contra o totalitarismo.
Sem dúvida estamos diante de um fenômeno que ainda não conseguimos entender por completo.
No território ucraniano se enfrentam grandes predadores: o capital ocidental e o capital russo, diante dos quais os oligarcas ucranianos espreitam como chacais, à espera do momento certo para apostar no mais forte. Seguramente, no futuro vão se escrever vários livros sobre o trabalho dos serviços secretos estrangeiros na Ucrânia deste princípio de século. Desse tema já falam, e falarão ainda muito, mudando o foco de acordo com as colorações ideológicas.
Abordaremos, no entanto, outro tema, de momento menos midiático: as causas mais profundas do descontentamento popular na Ucrânia. Alguma coisa aconteceu nesse país, ainda ontem tão pacífico e tolerante, e que agora busca desesperadamente mudanças urgentes, sem distinguir os meios e as forças que hoje prometem assegurá-las.
Os protestos, cada vez mais violentos, contra um governo de direita, cada vez mais violento, são encabeçadas por grupos de ultra-direita também cada vez mais violentos. Lamentavelmente, essa ultra-direita tem agora cada vez mais aceitação social. Isso acontece porque a ultra-direita age contra um governo corrupto, que praticamente perdeu sua legitimidade frente à maioria dos ucranianos, enquanto uma outra direita, agora uma terceira, a da oposição democrática, a dos contos europeus e prantos por Yulia Timoshenkoi, não teve mérito e capacidade para encabeçar os protestos populares. Assim, melhorando os cálculos, essa guerra interna ucraniana já não seria sequer entre duas, senão entre três direitas.
Um jornalista ucraniano certa feita comparou o papel da ultra-direita nacionalista em sua luta contra o governo com o papel dos fundamentalistas muçulmanos na “Primavera Árabe”. Uma vez considerada a enorme diferença cultural e histórica entre os dois casos, a comparação parece interessante e digna de um estudo mais aprofundado.
Criticando ou defendendo o partido fascista ucraniano “Svoboda”, a mídia local usualmente ignora o fato de que, há não mais que quatro anos, esse partido não passava de um grupelho de fanáticos, cujo apoio eleitoral se expressou em tão apenas 0,12% dos votos. Ao ganhar a eleição presidencial, o atual mandatário do país, Vítor Yanukovich, pensando na sua futura reeleição, resolveu dar luz verde ao Svoboda e à sua propaganda porque, conforme seu cálculo, só poderia ser reeleito se seu futuro rival fosse um sinistro candidato fascista. Nas eleições parlamentares de 2012, o Svoboda obteve 10,44% dos votos e até o momento duplicou ou até mesmo triplicou o número de partidários.
O nível de aprovação do presidente Yanukovich, por sua vez, está em torno dos 12,6%. Se as eleições fossem hoje, com segurança Yanukovich perderia para um candidato neonazista. Entre outras coisas, essa seria uma prova a mais da destruição da memória histórica do povo ucraniano. Lembremos que na Segunda Guerra Mundial, que para nosso povo foi a Grande Guerra Pátria, morreu um de cada seis habitantes do país. Minhas congratulações às novas mídias: livres, divertidas, democráticas e anticomunistas. Uma frase típica, que ressoa nas ruas de Kiev, vaticina: “Não são fascistas, são apenas nacionalistas”. Outras parecem mais reflexivas: “Melhor os fascistas que os bandidos”. Uma das características dessa pós-modernidade neoliberal é o rápido retrocesso mental pelo qual se confunde a pátria com as bandeirinhas.
Para imaginar o pano de fundo social do drama ucraniano, tomemos em conta que os preços ao consumidor no país são similares aos da Europa Central e que a aposentadoria mínima é equivalente a 100 dólares mensais, com a média chegando a 170 dólares, que é paga com muito atraso. As aposentadorias que se pagam sem atraso são as dos ex-deputados, que, por sua vez, podem alcançar os 15.300 dólares mensais. A família do presidente Yanukovich, tal como a de Somoza na Nicarágua, controla grande parte da economia do país. Seu filho Aleksandr é a quinta pessoa mais rica da Ucrânia. Ele começou seus negócios há poucos anos, arrendando ao governo os helicópteros recém privatizados.
Na Ucrânia, fala-se bastante do seu atual presidente, que quando jovem foi um assaltante e esteve preso por roubos acompanhados de violência. Na realidade o jovem Vítor Yanukovich, criado pela avó, vivia nos subúrbios de um povoado mineiro, e aos 17 anos foi condenado a um ano e meio de prisão por pertencer a uma gangue que roubava gorros de pele dos transeuntes. Comparadas às fábricas, terras, palácios e somas milionárias do Estado roubados por tantos políticos ucranianos, as ternas lembranças de adolescência de seu presidente são uma piada que não mereceria maior atenção, ainda que a mídia assegure o contrário.
A propósito do curioso “sonho europeu” dos ucranianos, há seis meses estive na Ucrânia Ocidental, o berço do atual nacionalismo, e visitei cidadezinhas fantasmas: todos os seus habitantes se foram, para trabalhar na Europa Ocidental ou na Rússia. Pedreiros, motoristas, empregadas domésticas e prostitutas ucranianas continuam invadindo os mercados de trabalho formal e informal da Europa e do mundo. Enquanto muitos latino-americanos voltam para seus países de origem, saindo da Europa, os ucranianos não param de chegar. Em comparação com a realidade do país, a Europa para eles, mesmo em crise, continua sendo quase um paraíso. “Não tem comparação!” — dizem. Uma mulher de um povoado perto de Lvov, que tem seus quatro filhos e dois netos espalhados entre a Polônia e a Itália, me explicava: se pudéssemos ganhar aqui, trabalhando em qualquer coisa que fosse, pelo menos (o equivalente a) uns 150 dólares por mês, ninguém iria embora. Para sair do país rumo ao Ocidente, os ucranianos necessitam vistos. Os vistos para o paraíso europeu não são dados a todos. Para muitos ucranianos, essa é a verdadeira razão do misterioso desejo de que o país seja membro da União Europeia.
E o que estaria acontecendo com a esquerda ucraniana? Quase nada, porque quase não existe. O Partido Comunista da Ucrânia, que até a semana passada foi aliado do governo de direita de Yanukovich, agora, seguindo seu instinto oportunista, “se indignou com a repressão” e “rompeu com o regime”. Muitas vezes, acho que a última esquerda verdadeira do país foi, na verdade, aniquilada nos campos de concentração de Stálin. Os grupelhos da esquerda ucraniana, mais um punhado de indivíduos que organizações, estão completamente ultrapassados pela magnitude dos acontecimentos atuais. Frente aos fatos, encontram-se divididos: uns optam por “estar com o povo” e “primeiro acabar com o regime e depois ver o que se pode fazer”; outros dizem que “esta guerra não é nossa” e que a derrota do atual governo conduzirá o país a uma ditadura muito pior. Ambas as posturas são honestas e reconheço que me sinto esquizofrenicamente dividido, dando razão às duas e olhando comodamente de longe.
À microscópica esquerda ucraniana, que critica o povo por seguir as direitas, eu gostaria de recomendar que relesse o poema “Solução”, de um grande alemão e grande comunista chamado Bertolt Brecht: “Depois da revolta de 17 de junho / o secretário da União de Escritores fez distribuir panfletos na avenida Stálin / declarando que o povo havia rompido com a confiança do governo / e que só poderia recuperá-la redobrando o trabalho. / Não seria mais simples para o governo, nesse caso, / dissolver o povo e escolher outro?”
Muitos na Ucrânia falam de uma “ditadura fascista” de Yanukovich e quando tentam explicar a situação a um latino-americano, por exemplo, definem o presidente como um “Pinochet ucraniano”. Sem que eu sinta qualquer coisa de positivo com relação a essa figura, não hesito em afirmar que uma verdadeira ditadura é algo bem diferente, e significa níveis de repressão e bestialidade absolutamente diferentes, que tomara que os cidadãos da Ucrânia jamais cheguem a conhecer.
Meu amigo Andrei Manchuk, uma pessoa muito honesta, e além disso um dos poucos jornalistas ucranianos de esquerda, afirma com toda segurança que Vítor Yanukovich, sem dúvida, é um ladrão e delinquente, mas idiota não é — e jamais teria ordenado tortura e assassinato de opositores, porque realmente não lhe convém. Andrei disse que Yanukovich é um adversário débil e indeciso, e que seu governo não caiu há um mês apenas porque a “oposição” só busca o poder, mas não quer arcar com responsabilidade alguma em um país saqueado e em colapso. Os únicos que não têm medo são os neonazistas.
Vários analistas ucranianos afirmam que, pela mesma razão da debilidade do presidente, aliada a um repúdio cidadão generalizado a ele, Yanukovich deixou de representar uma solução e se converteu em um problema. Tanto Putin como vários oligarcas ucranianos (e outros atores) já teriam optado por desfazer-se dele e substituí-lo por alguém mais hábil e carismático.
Exponho a seguir um resumo de dois olhares ucranianos, que refletem bastante bem duas posturas internas, predominantes entre quem não se identifica com nenhuma das três ou mais direitas nacionais. Não se trata de una tradução literal, mas de uma síntese.
Sem estar de acordo em tudo com essas opiniões, sinto que refletem bastante bem o sentimento geral das pessoas que não compartilham as paixões nacionalistas das novas “vanguardas” ucranianas.
Enquanto isso, em Kiev continuam circulando os rumores de todo tipo. Falam de centenas de sequestrados por órgãos de segurança, contam que o governo soltou todos os delinquentes perigosos. Das províncias chegam a Kiev, fora de horário, estranhos trens com jovens musculosos, contratados a 50 dólares por dia, para “ajudar a manter a ordem”. Desconhecidos matam um policial à paisana durante a noite. O ódio cresce e se expande. Grupos de manifestantes ocupam edifícios do governo regional e nacional. O movimento rapidamente se expande em direção ao sul e ao leste do país, territórios tradicionalmente pró-russos e politicamente mais passivos. Ao mesmo tempo, um ex-ministro da Defesa chama os cidadãos a se defender com as armas diante da violência policial.
Os manifestantes anunciam a criação da “Guarda Civil”. Circulam listas oficiais com centenas de presos políticos. Uma recente investigação jornalística desmente como sendo uma falsificação o vídeo dos policiais que desnudam um manifestante; no entanto não sabemos se esse desmentido é correto ou não. Não obstante, outros mortos e torturados com certeza são reais. A maioria dos autores desses crimes são anônimos e temos muitas razões para desconfiar das “versões oficiais” de ambos os lados. Temos também, no entanto, todos os fundamentos para acreditar que os grupos econômicos que estão por trás da atual crise podem estar incentivando a divisão do país e o choque entre seus cidadãos, para, em seguida, substituir a besta Yanukovich por algum outro, mais sutil e carismático, mas talvez muito mais parecido a um ditador fascista que o atual presidente.
Concluindo, vejo entre os sinais mais dolorosos do drama ucraniano a expansão de uma epidemia galopante de cegueira e surdez completas, onde só se abre espaço à intolerância, matéria-prima para uma guerra civil.
O nome do meu país, Ucrânia, provem de duas palavras do eslavo antigo: “u kraia”, que significam “na beira”; coisa que refletia a localização geográfica de suas terras, no limite sudoeste dos territórios eslavos. Agora, o nome Ucrânia parece voltar a refletir sua localização, na historia dos tempos que correm.
– Ex-primeira ministra, proeminente figura da oligarquia do gás e petróleo e antiga líder política da chamada “Revolução Laranja”, de 2004; opositora ao atual presidente; hoje presa por conta de um polêmico processo judicial. (Nota do tradutor).
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