A religiosa liberdade de destruir mulhers
Para quem aprecie os episódios de O Sexo e a Cidade pode parecer inacreditável, mas detestei viver em Nova Iorque. Todas as manhãs atravessava as intermináveis ruas de Queens, roídas de miséria e toxicodependência. Esta cidade não é para ricos. Depois o Metro, uma cova fétida com centenas de paragens, todas iguais, onde chove sempre. Entre os carris o lixo, a água e as ratazanas, de que perdemos o medo e nos entretêm enquanto esperamos pelo comboio. Por fim Manhattan, desproporcional das estaturas humanas, claustrofóbica e epileticamente impacientada pela nossa presença. Manhattan é deliciosa para o turista como o deserto é para o viajante. E igualmente inabitável: os preços eram insuportáveis e a indecência repartia-se pródiga entre a extrema miséria dos mendigos e o luxo extremo dos muito ricos. As meninas da série de televisão já cá não moram e esta cidade não é para pobres.
Mas o que mais me chocava eram as manifestações diárias que a extrema-direita organizava ali, mesmo à porta da clínica privada onde as mulheres podiam abortar. Quando uma mulher entrava, os fascistas insultavam-na, ameaçavam-na, faziam-na chorar. Chamavam a isso exercer a sua liberdade de expressão. Mas depois a lei mudou: com o Obamacare a interrupção voluntária da gravidez passou a estar coberta pelos planos das seguradoras e os fanáticos anti-mulheres ficaram obrigados a respeitar uma distância de dez metros das clínicas.
Porém, no passado dia 30 de Junho o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu, por cinco votos a favor e quatro contra, retroceder dez anos as conquistas das mulheres daquele país norte-americano.
Por um lado, o Supremo Tribunal decidiu que o limite de dez metros violava a liberdade dos manifestantes, por outro, o mesmo órgão considerou que a liberdade religiosa do empregador estava posta em causa pelo Obamacare. O novo sistema de saúde, que obriga toda a população a comprar um seguro de saúde privado em leilões controlados pelo governo, permitia que o trabalhador escolhesse o seu seguro, ficando o patrão sujeito a comparticipá-lo. Foi então que David Green, o dono da cadeia de supermercados Hobby Lobby, avançou para tribunal. Queixava-se de que ser obrigado a comparticipar a interrupção voluntária da gravidez violava os seus princípios religiosos. Para salvaguardar a sua liberdade religiosa, o Supremo acabou com a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres e agora é o patrão que escolhe o tipo de seguro que as mulheres podem comprar porque, segundo o acórdão, «ninguém pode ser obrigado a pagar por algo que julgue moralmente repulsivo».
Infelizmente, o acórdão do Supremo não impede que o governo dos EUA gaste o dinheiro dos contribuintes estado-unidenses em guerras que a maioria do povo julga moralmente repulsivas.
Os patrões não estavam a pagar nada a ninguém porque toda a riqueza é criada pelos trabalhadores. Os empregadores eram forçados a alocar uma parte da mais-valia apropriada aos trabalhadores à garantia da sua saúde sexual e reprodutiva. Ao excluir a contracepção e o aborto dos cuidados de saúde comuns, milhares de mulheres serão devolvidas a uma maior desigualdade económica, cultural e política.
Como escreveu Ruth Bader Ginsburg, juíza do Supremo que votou contra esta decisão, «o custo de um Dispositivo Intra-uterino é quase o equivalente a um mês de salário de uma trabalhadora a tempo-inteiro que receba o salário mínimo».
Esta semana têm eclodido protestos por todo o país à porta de lojas Hobby Lobby, o símbolo de uma lei que dá aos patrões a santa liberdade de destruir a liberdade das mulheres trabalhadoras. E curiosamente, quando protestam, os manifestantes são sempre impedidos de se aproximarem da entrada, não dez mas cem, às vezes duzentos metros. Não consta que as meninas de O Sexo e a Cidade se afligissem com quaisquer destes problemas
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